Sonia Castro Lopes
A escola já foi caracterizada pelo filósofo marxista Louis Althusser (1918-1990) como um dos ‘aparelhos ideológicos’ do Estado. Dotadas de programas racionais e eficientes, essas instituições seriam capazes de inculcar em seus usuários valores, princípios e crenças que interessam aos sistemas hegemônicos aos quais servem. A história da educação tem nos mostrado como a escola foi utilizada por governos autoritários para incutir em crianças e jovens sentimentos e condutas que se enraizaram, como, por exemplo, a valorização da meritocracia, da hierarquia, da disciplina e de uma maneira de pensar e agir de forma muitas vezes preconceituosa e excludente. Dependendo do regime político ao qual esteja submetida, pode vir a ser um espaço onde, muitas vezes, inexiste a tolerância e o respeito às diferenças.
Esta introdução serve como reflexão para abordarmos um dos projetos educacionais do atual governo. Menina dos olhos do presidente, as escolas cívico-militares adquirem centralidade na agenda da atual política educacional. Considerada uma das principais promessas da campanha, foi lançado em 2019 o Plano Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM), uma das apostas do MEC em parceria com o Ministério da Defesa. A intenção é implantar 216 dessas escolas no país até 2023.
“As [escolas] cívico-militares são instituições públicas comuns em que a gestão administrativa e de conduta são responsabilidade de militares ou profissionais da área de segurança, enquanto que a gestão pedagógica fica sob a responsabilidade de pedagogos e profissionais de Educação. Segundo o MEC, 15 estados e o Distrito Federal aderiram ao programa, que é voluntário. Para isso, as escolas devem obedecer a critérios como situação de vulnerabilidade social e baixo desempenho no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), atender de 500 a 1.000 alunos do 6º ao 9º ano do ensino fundamental e/ou médio e aplicar uma consulta pública à comunidade sobre o modelo” (R. MOURA, Escola cívico-militar é uma opção para todo o país? In: ECOA, 3/12/2020).
No lançamento do PECIM (setembro de 2019) o presidente atribuiu à democratização do ensino a causa das mazelas do ensino público no país. Utilizando-se de discurso análogo, o ministro da educação à época, Abraham Weintraub, afirmou que as escolas cívico-militares seriam uma forma de homogeneizar o ensino e conseguir um melhor desempenho dos estudantes nos exames de avaliação de aprendizagem melhorando, assim, a qualidade do ensino no país. O apelo à ordem, disciplina, segurança, ao domínio de certos conhecimentos considerados indispensáveis para o sucesso no mundo do trabalho sensibiliza famílias mais conservadoras, sobretudo as de classe média, que aprovam com entusiasmo a iniciativa.
Entretanto, não podemos esquecer que as lutas pela democratização da educação avançaram de forma consistente com a promulgação da Constituição Federal de 1988 que estabeleceu o conceito de educação básica como um direito de todos e um dever do Estado. A lei máxima de ensino (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional-LDBEN), bem como suas regulamentações posteriores, possibilitou a inclusão de um grande número de estudantes que antes não tinham acesso ao ensino formal e regular. Com esses avanços, a escola tornou-se um espaço que acolhe a diversidade, um espaço no qual idéias diferentes podem circular e conviver através do diálogo. O PECIM vai justamente na contramão desses princípios quando defende um ensino padronizado, homogeneizante, acrítico em nome de uma formação sólida em termos morais e pedagógicos para os filhos dos ‘cidadãos de bem.’ Os defensores do projeto argumentam que o mesmo possibilita ‘resgatar os valores da pátria e da família.’
As normas impostas por essas escolas e que compõem o seu programa institucional tais como uso obrigatório de uniformes, cortes de cabelo específicos, exigência de comportamentos adequados à cultura militar, anulam totalmente a identidade dos alunos numa fase da vida em que essa identidade está sendo progressivamente construída. De modo geral, a militarização costuma pasteurizar os indivíduos retirando deles a capacidade crítica e de autodesenvolvimento. Portanto, esse modelo de escola não pode atender à diversidade, na medida em que o aluno que não possui o perfil desejado ou não se adapta às regras impostas pode ser desligado da instituição.
Outra questão importante diz respeito à censura instalada nesses colégios, cuja finalidade é formar uma massa acrítica, facilmente manejável pelos que se acham ‘donos da verdade.’ Formar cidadãos críticos implica aceitar a liberdade de pensamento, respeitar e acolher a diversidade, adotar uma pauta progressista, fomentar o debate e o diálogo e isso jamais ocorrerá nesse modelo de escola. Ali a idéia de ‘escola sem partido’, já enfraquecida por várias decisões judiciais, volta a florescer. Imagine-se o currículo dessas escolas valorizando a aprendizagem de disciplinas como matemática, língua portuguesa, ciências exatas em detrimento de outras como sociologia, história, filosofia e artes. Currículo é um espaço de lutas e poder e cada escola possui relativa autonomia para organizar a sua matriz curricular. Para o bem e para o mal.
Para transformar escolas já existentes em escolas cívico-militares há que se fazer obras, reformas, enfim melhorar a infra-instrutora dos prédios para que se adequem às novas necessidades. O projeto prevê que as unidades sejam dotadas de laboratórios, quadras esportivas e piscinas e que os professores recebam salários bem mais altos que a média salarial da categoria. É alto o investimento feito pelo MEC, cujos recursos poderiam ser melhor aproveitados se fossem aplicados na rede pública tão necessitada de melhorias físicas, com professores mal remunerados e turmas repletas de alunos. A qualidade da educação passa por todas essas variáveis, mas o discurso liberal costuma afirmar que não há falta de recursos, o problema são as gestões ineficientes.
As escolas cívico-militares prevêem reserva de vagas para dependentes de militares, logo servem a estudantes com perfil socioeconômico diferenciado. Os candidatos civis são submetidos a provas sendo admitidos apenas aqueles que obtêm as melhores notas. Assim, essas escolas selecionam seu público, procedimento que gera vantagens nos processos avaliativos e indicadores de qualidade. Porém, ao reproduzir a desigualdade de oportunidades esse modelo vai na contramão do processo de democratização do ensino prevista na legislação, na medida em que seus alunos partem de um patamar diverso daqueles matriculados nas escolas públicas que não recebem tantos investimentos e acolhem uma população diversificada, egressa dos mais variados segmentos sociais. É preciso pensar que tipo de escola queremos, pois como afirmava o educador Anísio Teixeira, educação não pode ser privilégio.