Por Orlando de Barros
A imagem à Salvador Dali do Cavalo Caramelo imóvel no telhado, como se congelado em meio às turvas águas e o mar de lama, comoveu o mundo. Viralizou. Por sorte, foi “resgatado” por uma equipe abnegada que o sedou e transportou para lugar seguro. Pouco depois a tevê o mostrou, para conforto do planeta aliviado, que estava bem, e pastando. Caramelo teve, então, os seus quinze minutos de fama, e já nos prestamos a esquecê-lo.
Por incrível que pareça, tivemos também um boi no telhado, lá em 1918. E ele repercute até hoje. E este bovino os intelectuais nunca esquecem, ainda que o povo cá de baixo não tenha ideia dele.
E se a gente sábia guarda o boi no telhado com admiração, respeito e carinho é porque muito tem a ver com o modernismo, com a irrupção desta estética no Brasil e na França, nos anos 20. E isso merece explicação. É o seguinte.
Entre 1914 e 1918, a morte cavalgava solta com sua foice afiada nos campos da França. A maior parte da juventude já se fora. Uma última leva seria chamada para a degola nas trincheiras. Na lista, certamente seria convocado um jovem marselhês, o compositor Darius Milhaud (1892-1974).
Foi quando um amigo da família, o influente poeta francês Paul Claudel, da representação diplomática francesa no Rio, requisitou Darius Milhaud para trabalhar com ele. Boa parte do pessoal jovem das embaixadas já seguira para o abate, e estas precisavam de gente que as tocasse.
Milhaud chegou ao cais da Praça Mauá numa terça de carnaval com sua mala pequenina. Uma boa alma carioca empurrou os foliões e arranjou um lugarzinho no estribo do bonde. Milhaud repetia: “Botafogô, Botafogô, s’il vous plaît!”. Claudel o introduziu nos meios musicais da capital.
Conheceu quem precisava conhecer, Villa-Lobos, Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth, Marcelo Tupinambá, Aurélio Albuquerque… O primeiro samba ainda estava por ser gravado, mas conheceu os tanguinhos brasileiros, que na verdade, eram maxixes, um gênero que não se devia dar por escrito nos selos dos discos porque não era tido por dança decente. E então Milhaud deu com um tanguinho brasileiro que o encantou: “O boi no telhado”, de uma partitura ilustrada com o desenho de um boi malhado deitado confortavelmente num telhado.
De volta à França, com muitas partituras e alguns discos de gramofone, Milhaud pôs-se a compor, usando o que recolheu dos compositores populares do Rio. Pelos meados dos anos 20 ficou pronto a suíte/balé “Le boef sur le toît” (O boi no telhado), encenada com a ajuda dos gênios modernistas Cocteau e Picasso. Sucesso mundial, virou nome de um café em Paris.
É uma obra prima da música erudita do século XX. Trata-se de uma colagem de 20 recortes musicais dos compositores que Milhaud conheceu no Rio.
Nós os reconhecemos nas harmonias atonais ainda hoje revolucionárias de Milhaud. Lá estão o “Odeon”, de Nazareth, e o “Corta Jaca”, de Chiquinha. Quanto ao “tango” de 1918, que dá título à obra, trata-se de uma criação de um tal Zé Boiadeiro, ou José Monteiro, de que mal se guarda o nome.
Mais tarde, Milhaud compôs “Saudades do Brasil” e “Scaramouche”, em que também se percebe certa sublimação do cancioneiro brasileiro. Deixou uma autobiografia, na qual confessa seu amor pelo Rio e pelo Brasil.
Mas não quis mais voltar ao Patropi porque, ao seu dizer, Juscelino havia construído Brasília e o Brasil se industrializava. Desejava conservar a visão que tivera daquele paraíso de sons e de raros sentimentos que encontrou no Rio durante a crueza da Grande Guerra.
Orlando de Barros é professor aposentado da UERJ e escritor. Autor de “Corações De Chocolat” (2005) e “O pai do futurismo no país do futuro” (2010).