Entre mundos

Por Claudio Viola

E no ciclo natural da vida eu cheguei à minha condição de sessentão. Vejo muita gente com saudades daquele mundo dos anos 60 (minha infância), dos 70’s (minha adolescência), dos 80’s e por aí afora. As memórias afetivas são seletivas. Lembramos de coisas boas e deletamos as más. Lembro que o regime militar cortou várias liberdades civis. Revistas, rádios, TVs e jornais eram censurados. No começo dos filmes aparecia uma autorização da dona Solange, a censuradora-mor dos governos militares. Deixavam a gente ver e ouvir somente o que ELES queriam.

Era uma sociedade muito mais MACHISTA, RACISTA, HOMOFÓBICA e MISÓGINA do que a atual. Famílias escondiam seus filhos homossexuais que muitas vezes se suicidavam por não aguentarem a pressão. O Costinha fazia sucesso com as piadas de “bichinhas”. Piadas depreciativas de negros eram recorrentes e aceitas. As mulheres “de bem” eram as prendadas, recatadas e do lar. Mulheres libertárias, criativas e independentes eram facilmente rotuladas de PUTAS. Raríssimos os negros que frequentavam o ensino básico e quem dirá um banco de uma universidade. Então os movimentos negros foram conquistando espaço e reivindicando uma revisão histórica. Cobraram uma dívida moral de uma sociedade que os importou da África em navios precários, tratou por séculos como escravos e que após a ABOLIÇÃO (de caráter econômico) os jogou em guetos de miséria.

Lembro das mulheres conquistando a duras penas os bancos das universidades, a qualificação no ensino superior, os empregos que eram predominantemente ocupados por homens e assim fincando uma bandeira de reconhecimento de gênero. O feminismo alimentou a força dessas conquistas. Questionou o papel da mulher, refletiu sobre valores e sobre papéis sociais. O mundo daqueles tempos impedia que sonhássemos com uma mulher na presidências da república, como CEO de uma grande empresa, como desembargadora ou ministra de uma Suprema Corte. O machismo era predominante e nunca criminalizado. Naquele época um homem “matava por amor” e saía impune.

Confesso que tenho saudades da minha escola, de meus amigos de infância, da rua onde fui criado, de comer pera verde e goiaba no quintal majestoso de uma casa de amigos. Aquele quintal onde eu jogava futebol, bola de gude e lutava com espadas de madeira vão viver para sempre em minhas melhores recordações. Mas não posso esquecer que era um mundo tosco sob muitos aspectos. Não posso deixar de aplaudir as conquistas dos tempos atuais.

Mulheres são reconhecidas profissionalmente e respeitadas por sua capacidade. Negros tem espaço onde não tinham. Tratá-los como raça inferior é crime. Racismo é crime e injúria racial também. Bato palmas para isso. Não tenho a mínima ideia do que seja o sofrimento de ser segregado pela cor de pele. Ser olhado com desconfiança e desdém por gente que te sentencia por antecedência. Não posso deixar de aplaudir todos os seres humanos que assumem de peito aberto a sua ORIENTAÇÃO SEXUAL e que gritam para o mundo que são felizes assim. O corpo lhes pertence, a alma lhes pertence e o livre-arbítrio também. Sejam felizes, amem muito e construam parcerias não tóxicas, como tantas que eu vi entre casais HETERO nesses meus anos de vida.

Então não é “MIMIMI” quando refutamos opiniões públicas impregnadas de preconceito, de intolerância e de incômodo pela simples existência de homossexuais felizes, de mulheres livres e bem sucedidas e de negros que hoje ocupam o digno lugar que merecem na sociedade que também construíram com seu trabalho braçal, sua rica cultura e suas mentes criativas. Me orgulho das mulheres ocupando seu devido lugar, protegidas por leis contra o feminicídio, por leis contra o assédio e tendo o direito pleno de serem MULHERES. Me orgulho de todos que assumem sua sexualidade com alegria, com prazer e com respeito ao próximo. Me orgulho de cada irmão humano de pele negra que hoje conquistou seu espaço e o merecido respeito.

O MUNDO DE HOJE é muito melhor. Acreditem nisso. Do mundo da minha infância e adolescência eu fico com as memórias daquele lindo quintal da infância e das minhas descobertas. Mas era um mundo que tinha um cheiro fétido de coturnos, de censura  e de morte em porões fatais. Era um mundo impregnado de PRECONCEITOS dos quais muitos da minha idade ainda não se livraram e que um outro tanto de jovens de hoje teima em perpetuar. Disso não tenho saudades.

 

Claudio Viola é profissional de marketing, economista e cartunista.

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