Construir Resistência
Sonia Castro Lopes

Ensino superior: um grande negócio

Universidades públicas sofrem desmonte para beneficiar o ensino privado

 

Por Sonia Castro Lopes

 

É fato que no campo educacional regredimos a uma situação somente comparada ao período da ditadura civil-militar que esteve no comando do país por duas décadas. Nessa época, a constituição vigente (1967) não previa vinculação de recursos à educação, ao contrário das anteriores. Só para se ter uma idéia, a constituição que a antecedeu (1946) determinava que a União deveria reservar para a educação 10% das receitas de impostos enquanto estados e municípios entrariam com 20%. Após o golpe de 1964, o Congresso aprovou a nova Carta que retirou a vinculação automática de verbas para o ensino. A narrativa oficial, amplamente divulgada pela imprensa apoiadora do golpe, era a de que não havia falta de recursos para a educação, o problema era que se gastava mal.

A desobrigação da União com o ensino público e gratuito teve efeito catastrófico especialmente no curso superior. Verbas destinadas às universidades foram cortadas, houve paralisação nas atividades de pesquisa, professores tiveram perdas salariais significativas, o que gerou uma completa degradação das universidades públicas. Em razão do decreto-lei 477/1969 muitos alunos foram desligados e diversos professores, denunciados como subversivos, foram afastados através de processos sumários, nos quais o acusado tinha apenas dois dias para apresentar sua defesa. Houve uma verdadeira ‘evasão de cérebros’ – estudantes e docentes que foram estudar ou trabalhar em universidades do exterior – como foi o caso de Florestan Fernandes da USP, Anísio Teixeira da Unb e Maria Yedda Linhares da UFRJ, apenas para citar alguns nomes.

Quem se beneficiou com tudo isso? Logicamente, o ensino privado. A acumulação de capital no campo do ensino superior tornou-se escandalosa. Colégios particulares que ofereciam a educação básica ou mesmo cursinhos pré-vestibulares acabaram se transformando em grandes colégios que ofertavam ensino desde o jardim de infância até a faculdade. Dependendo da ‘rede de sociabilidade’ do postulante, o Conselho Federal de Educação autorizava o estabelecimento de diversos cursos superiores, em sua maioria, de baixa qualidade.

Voltemos para o momento atual. Os recursos para as universidades federais encontram-se bloqueados. Todas as despesas discricionárias (não obrigatórias) utilizadas para manutenção (luz, água, limpeza, segurança) e investimentos (insumos para pesquisas, bolsas, assistência estudantil, leitos e tratamentos hospitalares) estão suspensas. O ministério da economia já avisou que não haverá verba suplementar nem mesmo para o combate à Covid-19. Em consequência, muitos serviços de atendimento ao público serão interrompidos a partir do segundo semestre por falta de verbas. Os gestores estão diante de uma verdadeira “escolha de sofia”, tendo que desativar ou paralisar algumas atividades para não fecharem as portas.

Assim como os privatistas de ontem – defensores da idéia de que não faltam recursos, mas os problemas nas universidades estão relacionados a gestões ruins e precisaria ser mais ‘eficiente’-, os privatistas de hoje, apesar de declararem ser inadmissível que as universidades públicas corram risco de interromper suas atividades, também apontam ‘gastos em excesso’, notadamente na folha de pagamento dos servidores. Baseando-se nos relatórios da OCDE comparam as ‘regalias’ das universidades brasileiras com as da Europa cuja média de gasto com o ensino superior público é inferior ao do Brasil (1). Esquecem-se de que não há universidades públicas gratuitas na Europa. Em Portugal os estudantes pagam taxas anuais denominadas “propinas.” Tive oportunidade de enviar alunos para realizarem doutorado-sanduíche em universidades européias e boa parcela das bolsas recebidas das agências de fomento à pesquisa aqui no Brasil eram gastas com as taxas cobradas nas universidades conveniadas.

Os estudantes se mobilizam como podem, haja vista a última manifestação em defesa da UFRJ ocorrida no Rio de Janeiro na última sexta feira (14), mas a pandemia enfraquece os atos presenciais. Diante de um possível apagão nas universidades federais, os gestores passaram a cortar gastos, além de adiar não se sabe até quando as aulas presenciais.  Já foi divulgado que o Enem 2021 só será realizado em janeiro do próximo ano, por falta de verbas. Os estudantes são os mais prejudicados, pois sem bolsas-auxílio e de pós-graduação dificilmente poderão dar continuidade aos estudos e pesquisas que vêm desenvolvendo. Não há dinheiro para a educação, não há dinheiro para aumentar o auxílio emergencial que poderia tirar da miséria milhões de brasileiros. Mas há verbas para afagar os aliados do governo como o caso da recente liberação de recursos para os parlamentares da bancada ruralista no valor de R$ 3 bi destinados à compra de tratores e implementos agrícolas por meio de um “orçamento secreto” num suposto caso de corrupção já denunciado pela imprensa.

Assim como aconteceu no passado, quem se beneficiará com o desmonte das  universidades públicas? Certamente os que têm interesse no aumento de lucros do ensino privado. A irmã do ‘posto Ipiranga’, Elizabeth Guedes, é presidente da Associação Nacional de Universidades Privadas (Anup), órgão que representa interesses de conglomerados como Anhanguera, Estácio, Kroton, Uninove e Pitágoras (2). O ministro da economia possui investimentos na área da educação privada a distância, verdadeiro caça-níqueis que causa a precarização dos trabalhadores e dissemina um ensino de baixa qualidade em áreas importantes como, por exemplo, formação de professores.

Como já preconizava o saudoso Darcy Ribeiro, “a crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto.”

 

Notas da autora

(1) Bruno ALFANO. UFRJ já planeja parada. O Globo, Sociedade, 13/5/21, p. 16.

(2) Luciana CONSOLE. Como a associação liderada pela irmã de Paulo Guedes se beneficia de cortes no ensino. Brasil de fato, 9/5/21.

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