Ensino domiciliar em pauta

Sonia Castro Lopes

 

O ensino domiciliar que, de forma pedante, vem sendo denominado homeschooling, tem sido uma das pautas prioritárias do atual governo. Se até 2018 essa proposta era de responsabilidade do Ministério da Educação, hoje vem sendo tratada com destaque pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, ou seja, está sendo encarada como um tema relacionado ao direito da família e não como política educacional, embora sua proposta de regulamentação seja apoiada pelo MEC.

 

De acordo com esse modelo de ensino, crianças e jovens recebem aulas em suas casas com o apoio de adultos que assumem a responsabilidade pela aprendizagem. Em geral, são os próprios familiares ou um grupo de pais/responsáveis que se organizam e dividem entre si o ensino das disciplinas que compõem o currículo. Há ainda a possibilidade de contratação de professores particulares. Os defensores do ensino domiciliar argumentam que estão em jogo questões religiosas, princípios e valores familiares que devem ser preservados, insatisfação com o ambiente da escola por ser um local de violência e bullyng, além da convicção de que esse modelo contribuirá para aumentar a qualidade de ensino dispensado aos seus filhos.

 

Contudo, não há legislação específica sobre o assunto. Na verdade, não há proibição, pois de acordo com a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases, a educação é “dever do Estado e da família.” Por outro lado, essa mesma lei prevê que a educação dos filhos é dever dos pais ou responsáveis, cuja obrigação é “efetuar a matrícula das crianças na educação básica a partir dos quatro anos de idade.” E se não há legislação específica, é possível recorrer à justiça e obter autorização para educar em casa. Se o pedido será ou não deferido, vai depender da interpretação do juiz.  Em setembro de 2018, o STF decidiu que a educação domiciliar só deveria ser admitida quando houvesse legislação que regulamentasse o assunto. A proposta não avançou na Câmara e, com a pandemia do coronavírus, as aulas presenciais foram suspensas na maioria das escolas. Por estarem conduzindo mais ativamente as atividades escolares de seus filhos, várias famílias vem demonstrando  maior interesse pelo ensino doméstico.

 

No Brasil, essa prática acaba de ser liberada no Distrito Federal, onde o governador Ibaneis Rocha (MDB) sancionou lei que instituiu o ensino domiciliar em Brasília desde fevereiro último. Recentemente, a deputada Bia Kicis (PTB-PR), atual presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara Federal, empenhou-se em conduzir à apreciação da Casa um projeto que pretende alterar o código penal para facilitar a autorização do ensino doméstico. Isso porque os pais/responsáveis são sujeitos a sanções caso não matriculem seus filhos em unidades escolares na faixa etária em que o mesmo se tornou obrigatório.

 

Mas se há entusiastas, também são várias as críticas a esse projeto. Em primeiro lugar, teriam os pais ou responsáveis habilitação/qualificação adequada para ensinar? Quem definiria os conteúdos a serem ensinados? Baseado em que critérios? A prática dessa modalidade, de fato, melhorará a qualidade do ensino? Como aferir se os conteúdos estão sendo assimilados pelos estudantes? Tudo muito incerto e subjetivo. Além disso, é fato que a escola constitui um espaço de socialização onde os estudantes devem conviver com grupos diversos em constante diálogo, além de ali aprenderem habilidades e competências que em casa não podem ser desenvolvidas como, por exemplo, trabalhar em equipe ou desenvolver uma boa comunicação oral. E mais,  apenas as famílias com alto poder aquisitivo poderiam optar pela educação domiciliar, já que ela pressupõe disponibilidade dos responsáveis para orientar os estudos ou a contratação de professores para ministrar os conteúdos curriculares.

 

Uma das mais graves consequências dessa pandemia para o cenário educacional foi justamente a exposição da terrível desigualdade a qual estão submetidas nossas crianças e jovens. Aulas domiciliares ou boas escolas privadas para as camadas abastadas. E para os alunos pobres, os usuários de escolas públicas? Por possuírem dificuldades em acompanhar as aulas remotas e por total falta de acesso aos meios digitais ficam em casa, muitas vezes sozinhos, porque os responsáveis precisam sair para trabalhar, ou na rua expondo-se à violência e à contaminação.

 

Parece que retrocedemos ao passado quando os filhos da aristocracia dispunham de preceptores para lhes ministrar tanto o ensino das primeiras letras quanto o conteúdo das cadeiras necessárias à preparação para o prosseguimento de estudos em bons colégios e nas poucas universidades do país, onde invariavelmente formavam-se médicos ou advogados. Aos pobres e remediados restava o ensino público, carente de escolas e professores para acolher a população em idade escolar. Não por acaso chegamos a meados do século passado com um índice de analfabetismo que beirava 50% e até hoje, sete décadas depois, ainda não foi zerado.

 

Parece que a maior parte das iniciativas e propostas desse governo no campo educacional visam à exclusão e à perpetuação das desigualdades. Impossível pensar nos dias de hoje, diante de uma sociedade tão multifacetada, numa educação que não contemple diferenças, que não acolha, que não seja solidária com o sofrimento do outro, que não combata preconceitos e práticas autoritárias. Que valores queremos passar aos nossos jovens? Que cidadãos queremos formar? O retrocesso é visível. Precisamos resistir.

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