Em tempos de intolerância religiosa, a vitória da Grande Rio foi pedagógica.

Por Bruno Freixo

Na mitologia ioruba, Exu é um orixá mensageiro, que abre os caminhos e se porta como um interlocutor entre os humanos e as divindades, assim como Santo Antônio, entre os católicos, que representa um elo entre o mundo material e o mundo extrafísico.

A partir da invasão criminosa de Portugal por aqui, a cultura dos europeus foi imposta tanto aos nativos quanto aos africanos sequestrados de suas terras, que, semelhante a animais em cativeiros, foram obrigados a partir para territórios desconhecidos, deixando para trás suas famílias, filhos e filhas. E também suas culturas, religião e costumes.

Os que morriam nos navios durante o trajeto – por conta de doenças trazidas pelos brancos, de condições precárias de higiene, por estarem amontoados, e do esforço sobre-humano nos trabalhos braçais que eram forçados a fazer nos porões – eram atiçados ao mar, na frente de todos, virando comida de tubarão e de urubus. Os que sobreviviam, chegavam fracos em terra firme e tinham uma expectativa de vida aproximada entre 19 e 28 anos.

Bestializados, foram recriminados em todas as manifestações que lembravam a própria ancestralidade. A maneira que o europeu usou para impor seus costumes cristãos foi a catequização de indígenas e, muito tempo depois, dos escravizados. Muito tempo depois porque o negro “não tinha alma”, segundo os brancos católicos, e precisavam ser “civilizados”.

A ideia de civilização era branca, europeia e cristã. O resto era visto como selvagem e pagão.
Durante o chamado “sincretismo religioso” – eufemismo para etnocídio – o branco, finalmente, impôs sua própria religião, matando deuses e deusas de todos esses povos, semelhante ao que fizera no passado com o próprio cristianismo primitivo, quando forçou uma representatividade caucasiana em todos os personagens bíblicos do Oriente Médio. Ou ainda, quando ergueram, de braços abertos, o maior símbolo narcísico da colonização europeia, em 1931, no Corcovado…

Após o sincretismo, Exu foi apropriado como Santo Antônio – a exceção da Bahia, em que Santo Antônio foi sincretizado como Ogum, e em Recife, como Xangô. Era terminantemente proibido a negros e negras escravizados qualquer terminologia, costume ou crença que viesse do seu continente de origem.

Com o fim da escravidão – estimulada, sobretudo, por interesses econômicos -, aumentou-se a perseguição aos negros livres. Qualquer manifestação africanista era duramente reprimida pelo governo, que passou a criminalizar o samba, o jongo, as congadas, a capoeira e, não por menos, a religião.

Transformar um objeto de cultura do outro em algo maligno foi uma estratégia de reafirmação do racismo e supremacia branca da sociedade brasileira, profundamente imbricada em uma mentalidade colonizadora e elitista. Assim, os católicos iniciam a demonização da figura de Exu, que passa a ser identificada com o homem negro, do mesmo modo que a figura da Pomba-gira, que é a representação feminina de Exu, mulher corajosa, livre, insubmissa e destemida, simbolizando uma ameaça à tradição católica conservadora, que precisa do modelo feminino submisso e dependente, construído na cultura patriarcal proveniente da tradição monoteísta abraâmica (base do judaísmo, do cristianismo e do islamismo).

Nesse panorama, a cultura do colonizador precisa ser única, universalista e “vencedora”.
Única porque é autoritária. Universalista porque é arrogante. E vencedora porque é competitiva, capitalista e precisa enxergar o mundo pela lente da hierarquia, da submissão e da redução ao lucro.

Os colonizadores transformaram o pobre em bandeirante. Hoje, qualquer um pode se esconder pela internet e escancarar ao mundo sua ignorância, suas frustrações e repressões. Reclamam do carnaval o tempo inteiro. Torcem para chover no desfile. Xingam gratuitamente celebridades. Debruçam no túmulo da menina que lamentavelmente morreu esmagada por um carro alegórico, não por humanidade, mas única e exclusivamente como um pretexto para exporem seu ódio às escolas pretas de samba.

Evangélicos raivosos detonam Exu.
Até Jesus, quando representado de forma mais “melaninada”, é cancelado.
Mas o Jesus australiano, Thor, Zeus ou Taranis não incomodam, assim como Papai Noel, que não vem de Angola, mas do polo norte…

O problema não é o deus.
É a cor da pele em que esse deus é representado no desenho.

A demonização de Exu é uma forma simbólica de autorizar o ódio ao próprio negro.
É a perpetuação da lógica colonizadora e da mentalidade escravagista.
Se Exu fosse branco e Jesus negro, o que sobraria do cristianismo?

 

Bruno Freixo é historiador e pesquisador nas áreas de Sociologia das Religiões (Unirio) e Ciência e Tecnologia no Brasil Oitocentista (MAST)

Resposta de 0

  1. Excelente texto. Exu é o caminho é a verdade e a vida. Exu é o movimento, é mudança, ele a própria dinâmica do universo. Laroiê, Exu!

  2. Texto muito bem escrito. A desconstrução do preconceito em relação às religiões de matriz africana é essencial para o processo de cura desse racismo arraigado na nossa cultura.

  3. Texto excelente e conteúdo urgente para descontruir o preconceito em relação às religiões de matriz africana. Falar sobre essa temática ajuda a remover a doença do racismo, arraigada tão profundamente em nossa cultura.

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