Em pauta, o “novo” ensino médio

Por Sonia Castro Lopes

Reformar ou revogar o projeto do “novo” ensino médio? Essa é uma questão que tem provocado discussões acaloradas e ocupado o centro dos debates no campo educacional.

A ideia da reformulação do ensino médio começou a ser discutida em 2013, através de um projeto de lei que previa a organização desta etapa em áreas de conhecimento. Porém, data do início do governo Temer (2016) a criação de uma Medida Provisória convertida em lei um ano depois (Lei 13.415/2017) que aprovou em regime de urgência uma reforma sem qualquer diálogo com principais sujeitos envolvidos no processo educativo. No contexto de retrocesso político marcado pelo golpe de 2016 foram criadas condições para que essa legislação prosperasse sob a justificativa de que a reforma tornaria o currículo mais flexível atendendo aos interesses dos alunos. Implantado em 2022, o novo currículo do ensino médio vem sofrendo críticas de entidades ligadas à educação que, apoiados por docentes e estudantes, propugnam a revogação da lei.

Em resposta a essa reivindicação, o Ministério da Educação, por meio da Portaria 399/2023, propôs uma consulta pública para avaliar a reestruturação da política nacional de ensino médio. Como costumam afirmar os especialistas, é no ensino médio que se concentra o nó do sistema educacional, pois é a partir dessa etapa que se decide o futuro dos jovens, seja pela progressão de estudos em nível superior, seja pela inserção mais rápida no mercado de trabalho.

Vale lembrar que o currículo deste “novo” ensino médio foi organizado por áreas de conhecimentos em lugar de disciplinas. Essas áreas de conhecimento (Linguagens, Matemática, Ciências Naturais e Sociais) integram a formação geral básica comum a todos os alunos com duração de 1800 horas. Além dos conteúdos de formação geral existe a parte diversificada do currículo – os itinerários formativos – com duração de 1200 horas que se definem como um conjunto de disciplinas, projetos, oficinas, entre outras situações de trabalho que os estudantes poderão escolher de acordo com seu interesse. A legislação prevê ainda a escolha de itinerários voltados à formação técnica e profissional ou a possibilidade de cursar itinerários integrados que combinem diferentes opções.

A baixa qualidade do ensino médio ofertado no país e a necessidade de torná-lo atraente aos jovens, tendo em vista os altos índices de reprovação e abandono observados nessa etapa, foram as alegações para a implantação do projeto. Mas seria apenas o currículo desinteressante o fator que levaria os estudantes a deixar a escola? Que dizer das escolas sucateadas, sem espaços culturais, esportivos, laboratórios e bibliotecas? O que pensar da ausência de planos de carreira para os profissionais da educação, submetidos a formas precarizadas de trabalho? E dos alunos que, na faixa dos 15-18 anos, precisam trabalhar para ajudar a compor a renda familiar e para tanto são obrigados a se ausentar da escola?
Na verdade, essas questões estruturais foram herdadas da política educacional implementada na época da ditadura civil-militar por meio da Lei 5692/71 que tornou o ensino médio (então denominado segundo grau) um curso compulsoriamente profissionalizante que nem conseguiu aparelhar os jovens para ingressar com relativo êxito no mercado de trabalho, nem os preparou satisfatoriamente para prosseguir seus estudos em nível superior. O objetivo (embora não declarado) dessa reforma foi conter o acesso de certo segmento de estudantes à universidade, notadamente na rede pública onde se concentram os jovens de classes sociais menos favorecidas.

A história parece se repetir no caso do “novo” ensino médio. As escolas privadas, comprometidas com seu público, continuam a investir nos conteúdos de formação geral, necessários ao sucesso dos jovens nas provas de acesso às melhores universidades. As instituições públicas, sem infra-estrutura adequada e sofrendo com a escassez de professores, muitas vezes não oferecem condições para que seus alunos façam escolhas a partir dos “itinerários formativos” que estejam de acordo com suas necessidades ou preferências, conforme já apontaram pesquisas e diversas reportagens publicadas pela grande imprensa.

A atual reforma do ensino médio empobrece consideravelmente o repertório de conhecimento dos estudantes, na medida em que subtrai ou minimiza no currículo escolar disciplinas como filosofia, sociologia ou história enfraquecendo deliberadamente a visão crítica dos jovens acerca dos problemas sociais e econômicos enfrentados pelo país. Ao diminuir a carga horária da parte geral do currículo, acentua-se o abismo entre o ensino nas escolas privadas e públicas (que vão oferecer o mínimo exigido por lei), acirrando consideravelmente a desigualdade educacional.

É preciso ter coragem e vontade política para encarar o problema. Reformar, reestruturar ou ressignificar o ensino médio são termos utilizados por quem se utiliza de discursos vazios ou defende práticas inócuas para resolver a questão. Temos um problema grave a exigir uma resposta diante da realidade das escolas que servem aos jovens desfavorecidos. Uma mudança que deve se iniciar com a ampliação do diálogo entre os diversos sujeitos do campo educacional, mas não pode parar por aí. Estamos diante de uma crise que se agravou principalmente em razão da pandemia e das políticas de um governo que subtraiu recursos de áreas prioritárias como a educação e alçou à cúpula do MEC quadros desqualificados e corruptos.

Exatamente por isso torna-se urgente analisar a atual concepção sobre o ensino médio e revogar uma lei na qual se encontra embutida a ideologia de uma educação empobrecida, uma educação de conteúdos mínimos que se preocupa em abastecer o mercado com profissionais pouco qualificados, capazes de aceitar passivamente a intensificação e precarização de seu próprio trabalho.

 

Sonia Castro Lopes é historiadora e professora aposentada da UFRJ.

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