Como quase dancei nas areias quentes do Leblon
Elvis de Paula, 25, escolarizado até a oitava série do ensino fundamental, desempregado, morador num conjunto residencial de Benfica olhou o céu e pensou em ir até o Leblon pegar uma praia e, quem sabe, fazer um ganho. Contou o dinheirinho e viu que dava para pagar a passagem do 476. Com alguma sorte, talvez conseguisse um extra, um cordão, um celular ou algo que pudesse ser negociado com os ‘compradores’ de jóias e similares que infestam a cidade.
Era um dia de real grandeza, tudo azul, com o mar à la Istambul e um sol de torrar os miolos, como sentenciou Chico, o nosso Buarque. Saí para a caminhada diária, de máscara e com um frasquinho de álcool gel, mas optei em ir pela orla, a areia batida, a água fresquinha batendo nas pernas. Quer coisa melhor? Nas mãos uma pequena bolsinha com o celular e uma nota de vinte para a água de coco; nos ouvidos o fone para ouvir Chico, sempre ele.
Ao me aproximar da divisa entre Leblon e Ipanema, vislumbrei Elvis sentado, escondido por um monte de areia. Encarei o garoto e imediatamente imaginei que iria dançar. Pensei nas caravanas de Irajá, nos suburbanos do Jacarezinho a caminho do Jardim de Alá e, num átimo, percebi que o menino não levava consigo facões ou adagas, tampouco estava com uma sunga estufada ou calção disforme. Novamente Chico a me socorrer com sua poesia.
Mas Elvis não estava ali a passeio, ou talvez estivesse, sei lá, mas viu passar o cavalo selado e pensou: Por que não? Passa a bolsa tia, anda logo! Ainda tentei negociar: o celular não, minha vida está toda aqui, mas tenho uma nota de 20 que talvez dê pra você almoçar. Não fui suficientemente persuasiva e resolvi resistir agarrando a bolsinha com a força que me restava, ainda sob impacto do susto inicial. Foi aí que dancei. O rapaz arrancou os fones do meu ouvido e me empurrou com brutalidade. Sem condições de defesa, ainda tive forças para gritar por socorro enquanto ele se afastava com meus pertences. Imediatamente, surgiram um ambulante e uma moça que saíram atrás dele gritando o famoso ‘pega ladrão!’
Cinquenta metros à frente encontrava-se uma viatura com policiais militares que fazem ponto diariamente no local. Elvis correu, mas não conseguiu driblar os dois cabos da PM-RJ. Rendido, acabou entregando o produto do roubo. Atenta a toda aquela movimentação, me aproximei e reconheci os objetos que me foram surrupiados. Mas a história não termina aqui.
Ladeada pelas testemunhas que com seus gritos ajudaram a pegar o ‘meliante’ tive que ouvir do ambulante que se estivesse armada aquilo não aconteceria. A moça, que relatou ser advogada, declarou para deleite dos PMs que ‘direitos humanos devem ser defendidos para humanos direitos.’ Diante do olhar de aprovação dos guardas percebi que estava em meio a adeptos da máxima segundo a qual ‘bandido bom é bandido morto.’ O que fazer?
Confesso que fiquei dividida entre deixar pra lá ou seguir com os guardas para a delegacia a fim de registrar a ocorrência. Mas o braço doía. Talvez não fosse coisa séria, mas decerto o empurrão e os puxões que me deu na tentativa de arrancar a ‘necessaire’ tenham provocado uma contusão ou estiramento muscular. Uma das testemunhas, o ambulante, apimentou sua delação afirmando que o rapaz havia me espancado. Peraí, também não foi assim… Já estava a ponto de pedir para retirarem as algemas do moço, mas ao ouvir dos PMs a informação de que se fosse apenas roubo ele não sofreria qualquer sanção, seria levado à delegacia e posto em liberdade, resolvi optar pelo registro da ocorrência. Afinal, Elvis precisava de uma lição.
Fomos os quatro na viatura: eu e o cabo Jorge na frente e atrás o cabo Roberto com Elvis. Durante a viagem até Copacabana – a informação é que a ocorrência teria de ser lavrada na 12ª DP – Elvis me pediu perdão e eu achei por bem dialogar com o rapaz. Disse-lhe que o perdoava, ou melhor, conseguia compreendê-lo, mas como cidadã precisava prestar o depoimento já que ele havia cometido um delito e deveria responder por seu ato. Foi aí que soube que morava num conjunto residencial de Benfica, com o pai e a irmã, que era evangélico e tinha concluído o ensino fundamental numa ‘boa escola’.
A fim de me comover, iniciou uma cantoria e declamação de salmos que produziram efeito contrário, fazendo-me lembrar da dupla moral dos famosos líderes evangélicos conhecidos que, apesar de cometer todo tipo de falcatruas, nunca deixam de louvar a Deus nos cultos de suas igrejas. Sem qualquer preconceito, pois sabemos que o evangelismo é múltiplo e facetado, a questão é que por aqui sobram exemplos desses falsos pastores, como Flordelis, Everaldo e outros tantos que apoiam políticas armamentistas, negacionistas e genocidas em troca de dinheiro e poder.
Resumo da ópera: Fiz o registro depois de esperar quase duas horas num ambiente em que os policiais e escrivães, em sua maioria, desfilavam sem máscara desafiando os protocolos sanitários vigentes. Soube pelo escrivão que Elvis deveria ficar preso por 24 horas, mas como era réu primário seria submetido a uma audiência de custódia no dia seguinte com 90% de chance de ser solto. Só não o fora imediatamente porque infringira o artigo 57 (roubo com agressão). Como não havia marcas nem ferimentos aparentes, neguei-me a fazer exame de corpo de delito. Espero que o susto corrija Elvis de futuras transgressões. Só espero, sem ter certeza de nada.
Mas, afinal, de quem foi a culpa? Só pode ser do sol. Novamente Chico a me inspirar… Sol, a culpa deve ser do sol/Que bate na moleira, o sol/ Que estoura as veias, o suor/Que embaça os olhos e a razão…