Construir Resistência
Foto: Arquivo Pessoal

Ela

Por Miriam Waidenfeld Chaves

Submersa na escuridão, ela ali permaneceu por alguns dias que lhe pareceram intermináveis.

Mar, lago, lagoa, fundo do poço, do inconsciente, até hoje não se recorda por onde andou. Sabe, apenas, que o lugar era sombrio como uma noite sem estrelas em algum confim da Terra. E que, no exato instante dessa deslocação,  ouviu B. lhe soprando nos ouvidos “no te preocupes. La oscuridad tiene su encanto”. Acreditou.

Quem seria ela para duvidar de alguém assim tão familiarizado com a falta de luz?

Entretanto, persistia-lhe uma dúvida: estaria cega ou apenas com os olhos cerrados? Sono profundo? Tanto fazia, pois a sensação era a mesma. A de uma escuridão amorfa envolvendo o seu corpo. Leve, em uma viagem intergaláctica ou puramente mental.

Foi como um tempo sem tempo. Sem espaço ou qualquer tipo de som. Apenas um silêncio sepulcral e nada mais.

Como num filme a ser  editado, ela, estava pedalando uma bicicleta sofregamente. A trilha, estreita e coberta por uma gramínea rala, parecia uma rota de fuga.

Ao longe vislumbrou um sol amarelo se escondendo atrás de nuvens metálicas e rochas amarronzadas, esquálidas e desérticas. Notou que algo também se  aproximava.

Sem nenhuma água para saciar a sua sede, deparou-se com dois indivíduos em um veículo esdrúxulo, misto de caminhonete e motocicleta. Com apenas três rodas, parecia ter saído de algum ferro velho.

Sujos, suados e com cara de fugitivos, a cumprimentaram  em uma língua além-mundo. Quíchua? Latim? Tuaregue? Algum dialeto intergaláctico? Se identificasse uma palavra que fosse, talvez pudesse ter tido alguma noção de onde estava. Em que tempo se encontrava?

A escuridão a envolveu. Sentiu-se estranha, como se estivesse presa, imóvel sobre uma cama. Desejou enormemente entender o que estava lhe ocorrendo, mas diante da impossibilidade em obter qualquer reposta, lembrou-se de B. lhe sussurrando “la oscuridad tiene su encanto.” E assim,  rendeu-se a ela, pois esse era o único fato concreto que tinha diante de si.

A dupla de estranhos insistentemente lhe apontou a direção  de onde vinha, como se indicassem o caminho certo a ser seguido. Voltar? Impossível. Acabara de deixar  aquele lugar vazio e tenebroso.

Pelo menos, ia ao encontro do  sol, assim como D. de seu o arco-íris.

Lá na frente, um pôr do sol quente e aconchegante. Encantado, como aqueles das pinturas de Monet. Daí,  pensou algo inusitado: será que estaria dentro de algum daqueles quadros? Como escapar dessa situação? Porém, quanto mais inventava hipóteses para o que estava vivendo, menos sabia o que estava lhe ocorrendo.

E diante daquele sol abrasador, continuou a pedalar.

Movimentou a boca como um  recém-nascido em sua primeira incursão solitária pela vida. Pediu algo. Leite materno? Afeto? Ou simplesmente água? Nunca soube responder a essa questão, pois sabia que mergulhara em uma espécie de limbo, em um não lugar, carente de nomeações.

Mastigando o nada, persistiu atrás do sol. Para longe da escuridão. Será que estaria a salvo, seguindo para aquela direção?

Durante o caminho avistou uma criança brincando com uma boneca bem em frente a uma casa feita de pedra. Do jardim, árido e coberto por uma terra avermelhada, a menina desviou o seu olhar do brinquedo e deu-lhe uma espécie de adeus.

Nesse instante, ela  notou que a menina possuía apenas um olho. Deu um grito, derrapou e foi ao chão, machucando o seu joelho.

A menina correu até ela e, numa língua irreconhecível, pareceu que lhe dizia, “vai passar”. Soprou seu joelho e voltou às pressas para pegar a sua boneca e se trancar em casa.

Havia farejado algum perigo? Seu olho assustado através da janela dizia que sim.

De repente, notou alguém correndo em sua direção. Vinha do sol.  Logo atrás, alguns homens, com  suas  lanças ao alto, pareciam caçá-lo. Uma espécie de sacerdote, com um nariz aquilino e uma faca de cobre nas mãos, emergiu do meio daqueles guerreiros e gritou. Ela não teve dúvidas de que disse “peguem. Não o deixem escapar. Ele está destinado a Apu Inti.”

Sabia que já havia escutado antes a palavra Apu Inti. Mas onde?

Aflita, concluiu que não aguentaria por muito mais tempo essa situação.  Aí, B. lhe disse “tenga calma.”

Não houve jeito. Descontrolou-se.

Começou a gritar. Pediu socorro. Mas, e se aqueles homens com suas lanças decidissem ir atrás dela? Sim, lembrou-se daquele nome. Tratava-se de um deus Inca. Talvez acreditassem que ela estivesse ali a mando de Pizarro, o maior inimigo daquele povo quíchua.

Melhor ficar quieta. Calou-se. E nesse exato momento, abriu os olhos. Uma luz forte  quase a cegou. Fechou-os novamente, pois não suportou aquela claridade em seu rosto. Abriu-os outra vez e  enxergou o rosto de sua mãe sorrindo-lhe. Disse: “a cirurgia foi um sucesso.”

Daí, se lembrou de tudo. Inclusive daquele velhinho cego, empedernido e com ares aristocráticos que esteve sempre ao seu lado nesta jornada. Pareceu-lhe um avô acalentando a sua neta predileta.

Já no elevador, ela se deu conta  de que em certos momentos também esteve acompanhada por um outro alguém que constantemente havia lhe dito: “Vamos! Diviértete. No pierda tiempo. Inventa historias.” Chamava-se C.

No taxi, o motorista querendo puxar conversa foi logo falando:

– A senhora está vendo ali naquelas montanhas junto ao túnel como está tudo escuro? Nunca vi um céu assim desse jeito. Ouvi na TV que essa coisa estranha veio para ficar e que o  sol vai sumir. Desaparecer do nosso planeta. Já pensou?

Quando através do retrovisor olhou para o motorista, se apavorou ao reconhecer aquele nariz aquilino inconfundível.

Procurou por B. a sua volta, mas não o encontrou. Olhou novamente pelo retrovisor e o taxista lhe sorriu de modo indecifrável.

 

Miriam W. Chaves é contista e professora da UFRJ.

Compartilhar:

Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp
Email

Matérias Relacionadas

Rolar para cima