Marly Motta
A política fluminense assistiu, há poucos dias, um dos lances mais explícitos da disputa entre Eduardo Paes, o prefeito carioca recém-eleito para um terceiro mandato, e Claudio Castro, o governador do estado em exercício desde agosto de 2020, graças ao afastamento do governador Wilson Witzel, eleito em 2018. Entes federados carentes de recursos, o estado do Rio de Janeiro e sua capital lançaram simultaneamente programas sociais de apoio financeiro à população mais pobre que, como tal, vem sofrendo pesadamente os efeitos diretos e indiretos da pandemia: de um lado, o Auxílio carioca; de outro, o Supera Rio.
O pano de fundo desse embate remete à reorganização da política fluminense, depois do vendaval que corroeu as bases do pemedebismo no Rio de Janeiro. Mais do que em qualquer outro estado da federação, a chamada cultura pemedebista, cuja origem estaria na estrondosa vitória do PMDB nas eleições para a Assembléia Constituinte, em 1986, aqui fixou raízes. Segundo o cientista político Marcos Nobre, algumas das características dessa cultura teriam marcado a Constituição de 1988, e modelado o sistema político brasileiro a partir de então. A pedra de toque explicativa é a decantada governabilidade, entendida como a necessidade de o Executivo garantir super-maiorias parlamentares para que pudesse exercer, de fato, os poderes constitucionais a ele conferidos.
Pode-se atribuir o sucesso e a longa duração dessa estrutura pemedebista no campo político fluminense à construção do novo estado do Rio de Janeiro, a partir da fusão em 1975, guiada pela forma de ver e fazer política do governador Chagas Freitas (1979-83). Sob seu comando centralizado, foi montada uma máquina político-partidária estável e duradoura, sustentada nas ramificações da política local, a partir de uma complexa rede clientelista, na qual o deputado, articulando um sistema baseado em uma teia de obrigações recíprocas, se tornava o mediador dos moradores de bairros, dos membros de corporações e de grupos religiosos junto à máquina governamental.
Dessa forma, o chamado chaguismo estava ligado não apenas aos espaços formais de atuação e de representação política, bem como aos espaços informais, vale dizer, aos grupos religiosos, às escolas de samba, aos clubes recreativos e esportivos. Através do uso eficaz dos recursos de poder de que dispunha no Executivo, Chagas Freitas pôde articular essas várias redes e transformá-las no principal motor do que se convencionou chamar de máquina chaguista. Absoluto foi o controle que exerceu sobre o MDB e a Assembléia Legislativa, com quem mantinha vínculos estreitos. Ao contrário dos ex-governadores Carlos Lacerda e Leonel Brizola, os quais em diversos momentos de seus governos tiveram que enfrentar uma dura oposição na Assembléia estadual, Chagas Freitas garantiu um tranquilo relacionamento com o Poder Legislativo do estado.
A eleição de Moreira Franco (1987-91) para o governo do estado, e de Gilberto Rodriguez para a presidência da Alerj, ambos do PMDB, selaria uma aproximação entre os dois Poderes, que se tornaria crescente na medida em que a Constituição estadual de 1989 fez do comandante do Legislativo uma figura de peso nas negociações com o Executivo. Pela primeira vez, o presidente foi reeleito (1987-91), reafirmando um pacto que se repetiria como um padrão da política fluminense.
“Conversa primeiro com o Sérgio”. Assim, o então governador Marcelo Alencar (PSDB/1995-99) definiu a natureza das relações que mantinha com Sergio Cabral (PSDB), presidente da Alerj. Com bom trânsito pelos diversos partidos políticos que compunham a Assembléia, Cabral foi peça-chave nas composições que resultaram na aprovação de um conjunto de privatizações de empresas públicas, dentro do programa neoliberal adotado pelo PSDB também a nível nacional.
A decisão de Cabral de se transferir do PSDB para o PMDB, e de se manter no comando da Assembléia ao longo de oito anos (1995-2002), parece demonstrar a existência já consolidada de uma estrutura de poder capaz de se impor no jogo político fluminense. Aquilo que o então prefeito carioca, Cesar Maia, denominou de o Partido da Alerj, o Palerj. Por isso mesmo, Cabral optou por um nome tradicional para substituí-lo no comando da Casa, o do secretário-geral Jorge Picciani, que conhecia como poucos os meandros de seu funcionamento. Nessa condição, não só garantiu a Cabral um governo (2003-10) sem sobressaltos em sua relação com o Legislativo, como, principalmente, se converteu em um dos maiores fiadores da política fluminense.
Mas aí…. Chegou o tsunami da Lava-jato que varreu esta estrutura de poder construída ao longo de décadas. Seus principais expoentes foram parar na cadeia – Cabral, Picciani, Pezão, Paulo Melo, apenas para citar os mais vistosos –, e a estabilidade da política fluminense foi levada de roldão pelo duplo desejo da sociedade de “punir os corruptos”, por um lado, e de “eleger não-políticos acima de qualquer suspeita”, por outro. A eleição do juiz Wilson Witzel em 2018 não correspondeu, no entanto, aos anseios do eleitorado fluminense. Ao deixar de lado a indispensável montagem de uma base política sólida em um estado que não admite ser palco para amadores, o governador entrou para a galeria de uma organização corrupta que tem um estado para chamar de seu. Afastado do governo, purga seu inferno político no bairro de onde nunca deveria ter saído. Foi o avesso do avesso do avesso.
E agora, Rio? São muitos os aspirantes à tarefa de reorganizar e estabilizar a outrora organizada e estabilizada política fluminense. Podemos dividi-los, grosso modo, em novatos e experientes. Neste grupo, distinguem-se Eduardo Paes, Rodrigo Maia, André Ceciliano (presidente da Alerj desde 2017), o senador Flavio Bolsonaro, o deputado federal Marcelo Freixo, o prefeito de Caxias, Washington Reis, cada qual com seu capital político e projeto de governo. Todos, no entanto, com variados graus de intenção de abandonar a “estrutura original” e construir um novo padrão de relacionamento entre os Poderes.
À frente do grupo dos novatos, encontra-se o governador Claudio Castro. Quem é ele? Eleito na chapa de Witzel, Castro viu cair em seu colo o governo de um estado que está, desde então, à procura de um autor capaz de escrever um enredo para esses novos tempos na política fluminense. Com apenas 41 anos, membro da Renovação Carismática Católica, cantor e compositor de repertório religioso, em 2016, foi eleito vereador pelo PSC (Partido Social Cristão) e, dois anos depois, assumiu como vice-governador. Seja seguindo a velha cartilha pemedebista, seja pela falta de um padrinho político e o perigo que isso representa, Castro se entrosou rapidamente com o presidente da Alerj, o petista Andre Ceciliano, ao mesmo tempo em que se aproximou do presidente Bolsonaro por meio do senador Flavio.
É certo que a pandemia complica as articulações em curso na política fluminense, mas não impede que elas se coloquem na mesa de jogo. As incertezas são grandes em um campo tão fragmentado e carente de lideranças solidamente testadas em situações de estresse político. O prefeito Eduardo Paes e o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, são peças fundamentais nesse xadrez. O primeiro, busca esvaziar nomes tradicionais da esquerda, como Marcelo Freixo, ao lançar o nome do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, ligado ao PT. Maia, por seu lado, busca reviver a força do antigo MDB no Legislativo, acenando com a possibilidade de vir a ser um puxador de votos para a legenda. Ao mesmo tempo, reafirmando sua tradição de partido-bonde, o MDB flerta com Castro, obrigado a rever, pelo fator Lula, sua estratégia de “afilhado” do capitão.
Parodiando um antigo samba, o pemedebismo agoniza, mas não morre. Será?
Marly Motta é historiadora; professora aposentada da FGV/RJ.