Por Walter Falceta
O vetusto rapaz do sapatênis foi abandonado por próprio partido, o PSDB, e anunciou, humilhado, a desistência de sua candidatura à presidência da República.
João Doria iniciou sua escalada rumo ao Planalto ao vencer a eleição para a prefeitura de São Paulo, em 2016. O início da gestão teve duas marcas: a teatralização do poder e a obsessão privatista.
Constituiu claques e plateias de aluguel para suas encenações como gari e coletor. Tentou, de alguma forma, reviver o populismo janista, sem sucesso. Sua carreira de ator canastrão não decolou. Guardou com os aplausos de uma igual, a ex-atriz Regina Duarte.
Paradoxalmente, a gestão Doria teve a pior zeladoria da municipalidade desde os tempos de Celso Pitta. Ruas esburacadas, bueiros entupidos, coleta reduzida, varrição infrequente, monumentos sujos, praças tomadas pelo mato: este foi o cenário constituído pelo sapatenista na maior cidade do país.
Ao mesmo tempo, resolveu tornar-se o antípoda favorito do bondoso Padre Julio Lancellotti. Na região da Cracolândia, sem projeto e o devido cuidado, derrubou uma casa com os moradores dentro.
Nas vias públicas, praticou um cruel higienismo social. Tornaram-se famosos os mangueiraços matutinos de água gelada contra a população em situação de rua.
João Doria queria privatizar tudo; e todos, se pudesse. Planejava entregar todo o patrimônio da cidade aos tubarões que sempre foram seus parceiros de negócios. Decidiu negociar os 107 parques do município, ação na qual foi parcialmente bem-sucedido.
A Construcap, sob a denominação de Urbia Gestão de Parques, por exemplo, assumiu por 35 anos os parques Tenente Brigadeiro Faria Lima (Vila Maria), Jacintho Alberto e Jardim Felicidade (Pirituba), Eucaliptos (Campo Limpo) e Lajeado (Lajeado). O contrato de concessão foi assinado em dezembro de 2019.
Os paulistanos viram o prefeito sucatear escandalosamente o estádio do Pacaembu. Eram frequentes, por exemplo, os cortes de energia elétrica durante os jogos. A ideia era repetir o bordão da rapinagem: “vejam, está tão deteriorado que só resta vender”.
O Paulo Machado de Carvalho chegou a ser avaliado em R$ 700 milhões. Acabou arrematado por R$ 111 milhões, uma bagatela, por um consórcio suspeito, montado às pressas, pelos vândalos do mercado.
Tinha como rosto visível um sobrinho do presidente da Federação Paulista de Futebol, que acumulava como pistolão o fato de ser casado com um sobrinha do ex-prefeito Gilberto Kassab.
A instrumentalização do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp) e do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) permitiram ao tubaronato praticamente destruir o belo estádio, inaugurado em 1940.
Tobogã e arquibancadas laterais já cederam aos golpes das retroescavadeiras. Serão 35 anos de alienação do patrimônio público. E os compradores ainda reivindicam desconto no pagamento e a imoral posse da Praça Charles Miller, à frente do complexo.
Eleito governador em parceria com o capitão miliciano, João Doria seguiu buscando distribuir os bens públicos a seus amigos nos negócios. Tentou, sem sucesso, entregar o Metrô, o Itesp (Fundação Instituto de Terras), a Furp (Fundação para o Remédio Popular), o Imesc (Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo) e até mesmo o Oncocentro, fundação ligada à Faculdade de Medicina da USP que produz próteses e realizada pesquisas no campo do combate ao câncer.
Ao Reserva Paulista, no entanto, entregou, no ano passado, o Zoológico, o Zoo Safári e o Jardim Botânico. No total, 30 anos de concessão, novamente pela mesma bagatela de R$ 111 milhões.
O olho grande do sapatênis estava do Conjunto Desportivo Constâncio Vaz Guimarães, que inclui o Ginásio do Ibirapuera. Por conta da pressão da sociedade, de atletas e parlamentares progressistas, no entanto, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), órgão nacional de preservação, determinou o tombamento provisório do complexo.
Doria imaginou ter feito seu nome em torno da vacinação contra a Covid-19, mas deixou o governo justamente com um afago a seus amigos empresários negacionistas: retirando a obrigatoriedade do uso da máscara em ambientes fechados, medida prematura e destinada a adular os eventuais futuros patrocinadores de sua campanha.
Agora, abandonado pelo próprio partido, trocado por Simone Tebet, é recomendável que privatize a si mesmo. Bem podia se vender para a empresa de coleta lixo para a qual prestou serviços por um dia. Travará, assim, íntimo contato com as latas que a história lhe reserva.
Walter Falceta Jr é jornalista e editor do Construir Resistência. Nasceu e vive em São Paulo. Foi repórter da revista Veja, repórter do Estadão, repórter e coordenador de Nacional e Política da sucursal paulista de “O Globo”, editor de Nova Escola, editor de Todosport Brasil, produtor de conteúdos do Meio & Mensagem e editor pioneiro do serviço de Internet do Estadão (NetEstado). Trabalhou em várias campanhas petistas e foi um dos integrantes do comitê de imprensa da campanha presidencial de Lula, em 1994. Tem especialização em Antropologia Visual e trabalha na redação e edição de livros. Foi presidente do Coletivo Democracia Corinthiana.