Construir Resistência
Foto: Arquivo Pessoal

Domingo de sol

Por Miriam Waidenfeld Chaves

 

O dia amanheceu espetacular na Barra da Tijuca.

Linha do horizonte nítida. Céu azul e mar flat. “Sinal de praia lotada. O bicho vai pegar hoje!”, pensa Soraya, animada.

Da varanda de seu apartamento, com um misto de suco verde e energético na mão, vai até o seu closet: biquíni branco meia-taça ou vermelho cortininha?

Olha para o espelho e sente orgulho do que vê. Seu marido ama seu corpo. As amigas o invejam. Os homens, de soslaio, comem a sua bunda. E enquanto espera Jorge voltar da academia, posta sua primeira foto do dia no Face: de biquíni vermelho com Paçoca nos braços, seu poodle, de três anos.

Dá alguns likes, mas não para Carla. Tem certeza de que, na moita, ela dá mole para Jorge. “Uma piranha”, pensa, ao olhar para sua foto almoçando em um shopping no dia anterior.

Soraya nasceu e  cresceu em Copacabana. Filha de militar, sempre gostou de malhar e atirar. Casada, mudou-se para a Barra, e junto com o marido abriu um centro de depilação que deu super certo.

Da varanda, admira a praia lotada. Do Carmo já montou sua barraca e dela comanda seus ajudantes. “Aquela gorda é muito arretada. Tem muito homem com medo dela”, conclui Soraya, que de certa forma desenvolveu uma amizade por ela.

“Porra, cadê o Jorge? Deve ter sido enredado por alguma piranha.” Passa um áudio para ele e vai até o closet outra vez.  Escolhe uma saída de praia recém- comprada pela internet: branca, de renda transparente.

Pega sua bolsa de praia e coloca suas bugigangas nela: canga, necessaire, água termal e seu novo brinquedinho, um taurus cor-de-rosa que Jorge lhe deu de presente de aniversário.

Atravessa a rua, cumprimenta Do Carmo na areia e segue ao encontro da turma.

– Oi, oi, diz, ao mesmo tempo em que nota um grupo de pivetes falando alto e gesticulando bem perto dela:

– Putzzz, maloca aí o bagulho, cumpade…tá dando mole, diz Cabeção.

– Calma aí, responde Pinguela, raquítico que nem ele só.

Soraya lança um olhar enviesado para o grupo e identifica Cabeção olhando para ela fixamente. “Caraca!”, repete para si, ao se lembrar dele no aniversário de Sara, no Bar do Nelson. Encarando-o, pergunta para as amigas:

– Não encontraram um lugar melhor para ficar?

– Não reclama e senta aí. Cadê o Jorge?

– Na academia. Já, já chega. Responde, sem tirar o olho do grupo, principalmente de Cabeção.

– Cara, você tá dando bandeira. Para de olhar praquele ali.

– Você não sabe de nada, Bia. E continua:  “O churrasco tá confirmado?”

Soraya, além de ser conhecida como a gostosa do pedaço, também é famosa pela sua impulsividade. E não tem medo de marmanjo. Acredita que é por isso que admira Do Carmo. À distância, claro.

A água está espetacular. Algumas piscininhas. O frescobol e até umas rodas de altinho movimentam a beira d’água. Todos se divertem. Apenas Soraya está atenta. Um olho sorrindo e o outro em Cabeção, que também está com as butucas nela.

De repente ele, feito um bife à milanesa, se levanta, sacode a areia do corpo e voa até o mar. Mergulha, dá uns caldos nos pivetes, joga Pinguela para o alto e espirra água para todo lado. Os bacanas se afastam, mas ele  continua mesmo assim, para alegria do garoto.

Na zoeira, esbarra em Soraya, que está saindo da água. Quase a derruba. Se encaram  e se devoram.  “Insolente”. “Lembrei de tu, gostosa.”

Da água até as amigas, Soraya, em segundos, recorda-se daquela noite no Bar do Nelson. Ela quase gozando. Ele puxando seu cabelo com força, sufocando-a. “Esse filho da puta tá irreconhecível. Favelado! Quem ele pensa que é? Mas, que essa loucura foi boa, não  tenho dúvidas”, pensa com ódio.

Lambe uns pingos de água salgada que escorrem pela boca, passa as mãos nos cabelos molhados e fecha os olhos. Ao abri-los, enxerga Cabeção esquadrinhando-a com um corpo que lhe diz, descaradamente, “vem”.  “Esse Zé Mané não tem noção, mesmo!”

Duas da tarde. Milímetros de areia disputados a tapa. Calor infernal. Ambulantes de todo tipo. Algazarra geral. Enfim, uma Sodoma e Gomorra de corpos nus, se exibindo num domingo de sol.

Soraya, as amigas, Jorge e os rapazes da rede de volêi, todos com suas cervejas geladas, definem os pormenores do churrasco para o próximo feriado. Ao lado, a turma de Cabeção divide unzinho, meio na encolha. E, espremidos diante da falta de espaço, os dois grupos parecem fazer parte da mesma galera.

Nessa confusão dos diabos, ao sentir o cheiro de favela no ar, Soraya redobra sua atenção. Cabeção não tira os olhos dela. Pinguela, por sua vez, sentado perto de Bia, sorrateiro, mete a mão leve em sua bolsa, agarra uma carteira e faz cara de felicidade. Suavemente, retira seu prêmio da sacola, quando se dá conta que Cabeção deixou-se cair sobre ele para acobertar seu mirrado esqueleto.

Escuta um estampido e, imediatamente, sente  um líquido vermelho e quente escorrer até o seu ombro. Sem entender, sai debaixo de Cabeção e olha para a moça de biquíni vermelho com um revólver cor de rosa nas mãos. E, aí, enxerga o pai se estrebuchando na areia.

É um corre, corre e uma gritaria de fanáticos.  Em torno dele, alguns banhistas berram “ladrãozinho”, “ladrãozinho de merda”. As Guardas Municipais chegam  e todos apontam para ele:

– Foi ele.  Estava bem ali, afanando uma carteira.

Pinguela, ainda zonzo, olha novamente para Soraya que o encara. As guardinhas o seguram, enquanto Do Carmo chega desesperada  e o abraça. Encara Soraya, ainda com a arma na mão, e entre dentes fala baixinho:

– Sua cadela, tu tá prometida.

Soraya sorri, abraçando Jorge.

 

Miriam W. Chaves é contista e professora da UFRJ.

 

 

 

 

 

 

 

 

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