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Desde quando general “bate continência” para capitão?

Sonia Castro Lopes

 

Quando criança ouvia lá em casa frase semelhante. Claro que o contexto era outro, ainda não havia um capitão a nos aterrorizar. Os capitães famosos nessa época tinham seus nomes pichados nos muros da cidade – Prestes e Marighela – amaldiçoados pelos simpatizantes dos partidos de direita que acabaram por desembocar  na malfadada ARENA. Meu avô era udenista, apoiador de Lacerda, eleitor de Jânio Quadros, desses de usar vassourinha na lapela. Leitor de Seleções e fã incondicional de John Kennedy. Não preciso dizer mais nada.

 

O que eu quero esclarecer é que hierarquia e meritocracia eram valores caros à laboriosa classe média de hábitos conservadores que via no comunismo o maior flagelo a se abater sobre o planeta. Estávamos nos anos 60, em plena guerra fria e o governo João Goulart se debatia em crises sucessivas, entre outras razões, por conta das prometidas ‘reformas de base.’ Boa parte dos integrantes das forças armadas, sobretudo o oficialato, de tradição golpista, via com maus olhos a aproximação do presidente com militares de baixas patentes que passaram a se posicionar politicamente. Na ânsia de obter apoio político, Jango procurou reforços entre sargentos e marinheiros. Foi aí que passei a ouvir de meu avô a sentença premonitória: Desde quando general bate continência pra sargento?

 

Esse intróito, na verdade, serviu para abordar a questão que ocupou os principais comentários políticos na última semana: a debandada da alta oficialidade do staff governamental. Saíram de uma só vez o ministro da defesa e os chefes das três armas. O que se diz por aí é que o alto comando não concorda com as parvoíces do presidente. Não concorda agora, porque há três anos o general Villas Boas, apoiado pelo alto escalão, intimidou o STF a negar o habeas corpus de Lula, o que muito ajudou a eleger Bolsonaro. Locupletaram-se de cargos e privilégios e agora estão achando que deram corda demais ao capitão. Aliás, essa é a cantilena de todos os bolsonaristas arrependidos. Atônitos, sem saber como justificar a escolha feita, afirmam que acreditavam na possibilidade de que seus aliados políticos, ministros e militares pudessem moldá-lo, conter seus arroubos autoritários. Ledo engano.

 

Bolsonaro cansou de apregoar que “seu” exército estaria ao lado do povo contra ordens abusivas cometidas por aqueles que não concordassem com suas atitudes autoritárias e negacionistas. Parece que o generalato caiu em si, embora um pouco tarde demais. A atuação desastrada do ministro da caserna frente a uma pandemia que já ceifou a vida de centenas de milhares de brasileiros contribuiu bastante para o desencanto dos generais. Resta ao capitão o apoio das forças auxiliares e das baixas patentes que ainda o consideram ‘mito.’ Como se sabe, ele as corteja sempre que pode e tem certeza de que suas milícias não o deixarão na mão. Especialistas garantem que não há condições para um golpe com apoio das forças armadas e que o capitão está acuado. Pode ser.

 

No passado, o governo democrático (alguns rotulam de populista) de Jango acabou gerando um sentimento anticomunista muito forte, clima que os adeptos do presidente hoje tentam recuperar sem muito sucesso. Trata-se de outra conjuntura, de outro momento histórico, não sejamos anacrônicos. Mas parte dos segmentos sociais mobilizados em prol do golpe em 64 – empresariado e camadas médias – são, em grande medida, praticamente as mesmas que compõem o núcleo duro de apoio ao atual governo. Embalados pela crença na depuração dos costumes e valores religiosos disseminados por boa parte das igrejas evangélicas ou na esperança da retomada em V prometida pelo ministro da economia, muitos ainda avalizam um governo caótico integrando os 30% da população que sustenta o presidente.

 

No Brasil de minha infância, Jango e a cúpula que o apoiava tiveram uma percepção equivocada do quadro político. Acreditavam que o exército, em sua maioria, apoiaria suas reformas, já que, pela origem de seus membros, representaria a vontade popular. Mas, para a alta oficialidade das forças armadas, princípios fundamentais como a manutenção da ordem social e o respeito à hierarquia deviam ser preservados.  A aproximação de Jango com os militares do ‘baixo clero’, alguns até eleitos para ocupar cargos legislativos, irritou a oficialidade e subverteu esses princípios. Provocados, os generais não admitiram bater continência para sargentos e marinheiros.

 

Os generais de hoje, apoiadores de primeira hora do presidente, depois de tanta incompetência, admitirão ‘bater continência’ para um capitão que, inclusive, foi um péssimo militar? A história repete-se pelo menos duas vezes, afirmou  Hegel.  E Karl Marx acrescentou: a primeira como tragédia, a segunda como farsa.

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