Construir Resistência
Foto: arquivo pessoal

Da dimensão individual à dimensão pública

Por Beatriz Herkenhoff e Desirée Cipriano Rabelo

Reflexões à quatro mãos

Nas últimas crônicas conversamos sobre como – pressionados pela #pandemia da #Covid-19 – fomos instigados a rever nossas posturas pessoais e resgatar nossa criança interior. Dar uma chance a nossa criatividade e sensibilidade ou, simplesmente, ampliar a escuta do outro ou de si mesmo…

Tudo isso ajuda-nos não apenas a superar este difícil momento mas, perceber que há belezas e aprendizados a serem desfrutados. Mas a gravidade do momento exige também mudanças no âmbito externo, alternativas coletivas, especialmente das políticas públicas.

Foi neste ponto que comecei uma conversa com minha amiga Desirée, atualmente vivendo em Barcelona, Espanha. Juntas, decidimos escrever essa crônica a quatro mãos. Nosso objetivo é pensar como o espaço público impacta o espaço privado e, por certo, a dimensão íntima de cada um.

Embora as atitudes pessoais sejam importantes para minimizar as tragédias advindas da #Covid-19, não podemos desconsiderar o papel das alternativas coletivas e as políticas públicas em sua missão de enfrentar as sequelas deixadas pela pandemia. E também de construir projetos para enfrentamento de futuras (e anunciadas) situações semelhantes.

O “novo” normal precisa ser inventado e não ser uma simples continuidade ou arremedo do que existia antes. O que supõe, ainda, um país democrático, uma sociedade mais participativa e organizada, colaborando com a construção dessas novas propostas.

Dentre os coletivos que se dispuseram a repensar suas práticas a partir das dores e perdas trazidas pela #Covid-19 está o formado por engenheiros, arquitetos e urbanistas, dentre outros que planejam e executam atualmente a forma como vivemos nas cidades, especialmente as de grande porte. Um dos pontos de inquietação desses profissionais é o modelo das cidades e suas moradias.

Durante a #pandemia, temos sido obrigados a passar a maior parte do tempo em nossas casas. No caso dos que vivem só, o distanciamento de amigos e familiares alterou o seu modo de ser e estar no mundo. Sentimentos de solidão, sintomas de depressão são frequentes e acabam baixando a imunidade e favorecendo a entrada do #coronavírus ou de outras doenças.

Igualmente dramática é a situação de casais com ou sem filhos que precisam conviver em residências pequenas, quase inabitáveis. Quando dividimos espaços com outras pessoas, os conflitos tendem a surgir e, às vezes, se tornam insuportáveis. Imagine então quando não há opção senão estar juntos todo o tempo?

Em seus estudos, Eva Illouz (2019) considera que o lar só é suportável para os casais se eles tiverem a possibilidade de percorrer caminhos diferentes durante o dia. Para a autora, se, antes, os casais se reencontravam somente à noite, agora passam dias confinados.

De fato, percebe-se que os apartamentos, especialmente os das classes mais baixas, foram concebidos apenas como o lugar usado basicamente para dormir e não para conviver. Essa tensão pela falta de espaço é agravada pela necessidade de trabalhar em casa (sob uma pressão quase sempre maior que do local originário do trabalho).

Confinados, somos desafiados a criar permanentemente momentos de diálogo, de cooperação e criatividade para lidar com as diferenças e o cansaço desse momento. A questão é mais grave nas famílias numerosas, quando há crianças e, às vezes, os avós. Nesse caso, além dos problemas citados, os pais precisam conciliar suas tarefas profissionais e encontrar soluções para as crianças, também privadas do necessário espaço para brincar e extravasar as energias e igualmente tensas pelas aulas virtuais.

Por isso, a organização/construção das novas moradias é um dos desafios que se coloca a médio e longo prazo provocado justamente pela pandemia. Na Europa, os profissionais que planejam a organização dos espaços onde vivemos, admitem a falência do modelo de habitação onde vive a maioria dos cidadãos: “apertamentos” que foram concebidos basicamente como lugares de dormir. Cômodos sem luz ou ar natural, varandas ou áreas de lazer comuns. Sem espaços específicos para trabalho ou mesmo para descontaminação (considerando que o home office veio para ficar e a iminência de outras pandemias). Com as devidas ressalvas, ainda persistem muitos dos problemas que, no início da era da industrialização, impulsionaram o surgimento do urbanismo que basicamente tratava de repensar as cidades e torna-las mais humanas.

Diante da precariedade do espaço privado ou doméstico, faz-se necessário pensar o espaço público e ampliar a oferta de áreas verdes e de lazer nos diferentes bairros. Áreas que facilitem encontros. Ou simplesmente ofereçam a possibilidade de se estar ao ar livre. Onde crianças e jovens possam brincar, jogar, correr e interagir. E os adultos possam relacionar, criar redes de apoio, além de caminhar e exercitar-se.

Desirée gosta de contar seu primeiro impacto ao mudar-se para Barcelona: a quantidade de praças em seu bairro, onde, ao fim de cada dia de aula, as crianças iam brincar sob os cuidados de pais e amigos que também desfrutavam daquele ambiente. “Roubaram nossas praças”, concluiu.

A segunda constatação: praças permitem o exercício da criatividade e da coletividade. Por isso são altamente subversivas. Então, fica fácil entender porque não temos tantas pracinhas no Brasil.

Falecido em maio deste ano, o arquiteto Jaime Lerner, conhecido especialmente pelas inovações feitas quando prefeito de Curitiba, dentre elas a implantação da primeira rua de pedestres do Brasil, deixou importantes reflexões sobre planejamento urbano. A mais importante delas: as cidades são feitas para pessoas e não para carros.

Mas, uma cidade que privilegie primeiro os moradores deve, além de oferecer transporte público de qualidade, garantir calçadas que, de fato, mereçam o nome de “calçada cidadã”. Onde as transeuntes sintam-se confortáveis e protegidos para circular, para sair da inercia, desfrutar o ambiente e encontrar pessoas. Nas calçadas do Brasil falta tudo: nivelamento, sombras e principalmente segurança.

Em uma entrevista concedida logo após o fim de seu exílio, Paulo Freire (Folha de São Paulo, 1979) contava que, no estrangeiro, o que mais sentia falta era da possibilidade de surpresas e de encontros com conhecidos em cada esquina. A recomendação de Freire aos leitores: quando sair de casa, desfrute minunciosamente cada instante. Trate com cuidado e intensidade cada momento. Porque pode ser que um dia você se exile e poderá não ter mais essa experiência.

Vale repetir: calçadas e praças são lugares de encontros. Importantes para a saúde física e mental. Possibilitam a interação, convivência e, consequentemente, o fortalecimento do sentimento de pertencimento ao bairro e à cidade. Nesse sentido, permitem o exercício da política em seu sentido mais pleno.

Embora a discussão dos urbanistas europeus seja importante, no Brasil ela corre o risco de parecer surreal diante da nossa desigualdade social e do recrudescimento da pobreza: como discutir a qualidade das moradias que nem mesmo merecem ser denominadas como tal? Grande parte de nossa população vive amontoada em espaços minúsculos, em condições precárias, com pouca luz, sem água ou esgoto.

Nesse tempo de aulas virtuais, além da baixa qualidade do sinal de Internet, os professores logo descobriram outra razão para tantos alunos insistirem em não acionar suas câmeras de vídeo: vergonha de mostrar a pobreza do ambiente onde vivem. Ficou famoso, o espanto da professora ao descobrir que seu aluno vivia em uma casa destelhada quando ele precisou sair da aula para colocar uma lona sobre o teto devido à chuva que começava. Este aluno tampouco tinha energia em casa e só carregava o celular graças à cooperação de um vizinho.

Ou seja, além de sem-praças, muitos vivem exilados em suas casas – às vezes em condições precaríssimas. Se nos países mais avançados, a #Covid impulsionou a discussão sobre a questão da urbanidade em seus espaços públicos e privados, em nosso país ainda estamos discutindo questões básicas de civilidade.

O maestro Tom Jobim dizia que o Brasil não é para principiantes. Nem na cultura, nem na política.Mas, voltando ao conselho de Freire, talvez devamos ficar mais atentos, porque há coisas que estão tão à mão que nem imaginaríamos o valor que poderiam ter.

Em Barcelona, por exemplo, após o fim do lockdown, a prefeitura promoveu uma série de atividades com o objetivo de minorar os impactos do isolamento social. Ações direcionadas principalmente para as crianças e os jovens que foram os mais castigados. Brincadeiras ao ar livre com músicas, danças, desenhos e atividades circenses multiplicaram-se justamente para promover a alegria do convívio, do lúdico, ou simplesmente de estar ao ar livre…

Mesmo vivendo no Brasil, um país tão diferente da Espanha, nossa criança interior e nossos sonhos mais ousados, inclusive de moradias, praças e calçadas dignas para todos, não podem ser calados. Não podemos deixar de ter esperança e de lutar. Nas palavras de Herbert de Souza (Betinho), um audaz sonhador:

“O que somos é um presente que a vida nos dá. O que nós seremos é um presente que daremos à vida.”

 

Beatriz Herkenhoff é doutora em serviço social pela PUC São Paulo. Professora aposentada da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo).

Desirée Cipriano Rabelo é jornalista. Após aposentar-se na UFES (Universidade Federal do Espírito Santo), onde pesquisava e ministrava cursos sobre comunicação e mobilização social, partiu para novos aprendizados. Hoje vive em Barcelona, Espanha.

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