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Crise no Arquivo Nacional: uma política de silenciamento da memória

Por Sonia Castro Lopes

 No apagar das luzes do ano que findou o diretor do Arquivo Nacional (AN), Ricardo Borda D’ Agua, exonerou as servidoras Dilma Cabral e Claudia Lacombe, responsáveis por um dos setores mais relevantes da instituição: o Projeto Memória da Administração Pública Brasileira. As funcionárias foram afastadas após se declararem preocupadas com o esvaziamento do Arquivo em relação aos documentos da administração federal. Evidentemente, trata-se de mais um desmonte na área cultural, desta vez uma clara tentativa de silenciamento da memória nacional.

Essa política foi inaugurada em 2019 pelo Decreto n. 10.148 assinado pelo presidente Jair Bolsonaro que retirou do Arquivo Nacional a competência de aprovar ou não o descarte de documentos. Pode-se imaginar o prejuízo que tal medida causa à pesquisa e ao desenvolvimento científico. Documentos absolutamente necessários como milhares de prontuários médicos e documentos financeiros que serviriam para a prestação de contas do governo junto ao Tribunal de Contas foram eliminados sem passar pelo crivo dos técnicos do AN.  O episódio é gravíssimo e não vem tendo por parte da grande imprensa o destaque que merece.

Sabemos que os documentos arquivados sofrem uma seleção prévia e que o trabalho do pesquisador com as fontes não produz uma ‘verdade’ acabada. O historiador, por exemplo, não é um arqueólogo da documentação, um mediador neutro, mas é capaz de formular questões e, a partir do diálogo com a empiria, construir uma interpretação que gera um conhecimento o qual será continuamente acrescido e aperfeiçoado pela ação de futuras investigações. Daí, a necessidade de problematizar o processo de construção e desconstrução de memórias sobre determinados fatos. Essa política de silêncio imposta pelo governo tem por objetivo gerar uma sociedade do esquecimento onde a memória nacional estará sempre a reboque dos interesses do poder. Entende-se aqui memória não apenas como o ato de recordar o que passou, mas também e, principalmente, como um processo de reconstrução através da crítica e reinterpretação do passado sob novos olhares.

No trabalho com fontes documentais supõe-se que quando penetramos num arquivo dialogamos com os documentos, conseguimos compreender o não dito ou aquilo que foi esquecido. O silêncio significa. Para além das memórias individuais e coletivas existem aquelas denominadas subterrâneas ou marginais que correspondem a versões sobre o passado de grupos dominados numa determinada sociedade. A memória dos feitos dos vencedores é a que permanece e se transforma em história oficial geralmente monumentalizada em suportes concretos como textos e obras de arte.

Quem tem o poder de escolher o que deve e precisa ser preservado? Certamente não são os governos por intermédio de chefes incompetentes que procuram blindar governantes de todo e qualquer malfeito que os documentos podem revelar. Nas sociedades antigas e pouco complexas o papel de guardiões da memória cabia aos mais idosos que transmitiam às novas gerações fatos, experiências, valores e tradições que deviam ser preservadas. Esse papel social dos mais velhos ao longo da história da civilização foi sendo substituído por instituições especialmente voltadas ao trabalho de seleção, coleta, organização, guarda e manutenção dos documentos para preservar a memória dos grupos sociais e da sociedade em geral, protegendo-os do esquecimento.

São instituições como o Arquivo Nacional que realizam atualmente de forma profissional uma tarefa anteriormente exercida pelos idosos nas sociedades de memória. Museus, bibliotecas, arquivos e centros de memória, através de profissionais que adotam critérios previamente estabelecidos pela ciência da informação, realizam esse trabalho e colocam à disposição da sociedade a memória retida por meio dos mais variados suportes materiais.

Lembro das minhas pesquisas de mestrado quando elegi como objeto de estudo a trajetória do diretor-geral do Departamento de Imprensa e Propaganda do governo Vargas (DIP) e das dificuldades que tive para encontrar informações sobre as atividades do poderoso Lourival Fontes (1899-1967). Percorri durante meses o acervo da Biblioteca e Arquivo Nacional, o arquivo do Exército e até o arquivo pessoal do próprio que se encontra em São Cristovão, cidade sergipana próxima de onde ele nascera. Muito pouco foi encontrado e só consegui concluir a dissertação após entrevistar amigos, adversários, antigos funcionários e políticos que com ele conviveram nas décadas de 1940/50 quando pontificou como responsável oficial pela censura no Estado Novo (1937-45) e depois, já no período democrático, como chefe da Casa Civil do segundo governo Vargas (1951-54).

Verdade seja dita que no final das minhas pesquisas tive oportunidade de consultar a documentação do APERJ – Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – órgão que preserva as principais fontes do período relativo à ditadura civil-militar (1964-85) e alguma coisa da ditadura estadonovista. Por serem momentos obscuros de nossa história, era intenção dos governos autoritários apagá-los. Mas, como se costuma dizer, para o bom entendedor pingo é letra e os traços, vestígios, indícios estão aí para quem quiser interpretar e aproximar-se dos fatos que os inimigos da democracia pretendem ocultar. O Arquivo Nacional sobreviverá a esta crise e os profissionais dedicados voltarão a exercer seu ofício com a competência de sempre.

 

Foto: Prédio do Arquivo Nacional situado na cidade do Rio de Janeiro. O Globo, 5/1/22

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