Por Virgilio Almansur
Não!!! Não se trata de Rawhide, a série americana que deu protagonismo ao belo Clint Eastwood, mesmo tendo sido coadjuvante naqueles longínquos anos 50 (precisamente 1959) no faroeste repleto de poeira, gado e algum drama em que o ator até se metia assessorando a direção em capítulos que andaram por aqui nos 60.
Não! O couro cru no longa de Jane Campion, uma campeã, é outro. Carrega o veneno, o laço afetivo tóxico, o cruzamento artesanal do couro escondido sob o leito a denunciar amores e crime primevo proibidos, envoltos em imagens e rituais narcísicos que a lama suja exige e se lava em seguida. Seu cão é alegoria selvagem e visceral em ATAQUE DOS CÃES, que poderia aqui encerrar neste parágrafo…
A marca da neozelandesa, Jane, tem na subversão das personagens uma característica exemplar. É onde os afetos são explorados, revelando aquilo a que o fetiche cobra enquanto fantasma. Se dissemos que algo é carregado pelos vínculos tóxicos inexplorados circunstancialmente, veremos um piano ser carregado na lama de Montana, em pleno 1925, assim como aquele primor que premiou Holly Hunter com um Oscar de melhor atriz há quase 30 anos em O Piano (1993). Lá estavam os componentes desviantes, carnais ou não, sem o que a trama seria incompleta.
Jane Campion, há dezoito anos (2003), carregou da fetichização à sensualidade o seu “In The Cut” (Carne Viva – “raw”?), sugerindo as latências sexuais e da violência — mais a sexualidade entre os atores — como mote num thriller de suspense e mistério. Aqui, em “The Power Of The Dog” (2021, pessimamente traduzido para O Ataque Dos Cães), essa percepção é transferida para nós, os espectadores. (“In the cut”, diga-se, também está no Netflix).
Campion é recorrente em temas que sugerem essa comunicação entre sujeitos de lógicas próprias, numa desconstrução dos personagens que permeiam seus demais trabalhos, como em Brilho De Uma Paixão e Retrato De Uma Senhora. O “Ataque” impressiona pela firmeza. Os tempos são dispostos numa cronologia através de atos, contribuindo para sequências em planos longitudinais que vez ou outra atrapalha a continuidade, muito embora tenha uma intenção da marcação temporal que avança na constituição de uma maturidade que é exigida dos atores e de quem os assistem…
Não é despiciendo invocar n’alguns momentos o brilhante Cinzas no Paraíso (T. Malick, 1978) que premiou Nestor Almendros com o Oscar de melhor fotografia de 79. As imagens apresentadas por Jane, trazem a mesma beleza captada por uma plasticidade incomum. São quadros e quadros de beleza contrastante com o tema sob concurso. Há uma narrativa simbólica que os persegue e sempre associada ao elegante e competente trabalho técnico. Algo que perpassa o simbolismo bíblico do salmista, em Campion, está na alegoria buscada por Malick. A unidade visual é a marca inconteste desses dois gênios.
Em alguns momentos caminhamos para Brokeback Mountain, muito mais pelos seus segredos e visuais montanhosos desconcertantes e que geram um horizonte que precisa ser enfrentado. Outras imagens sugerem Equus (S. Lumet, 1977), em razão dos inúmeros demônios particulares de todos os envolvidos nas questões religiosas e sexuais, sob o tormento de uma violência que Campion condensa na essência visceral que os animais suscitam ao gerar ameaça; mesmo que latente, os detalhes invocados na tela, pela diretora, encerram um misto de dinâmica já usados e utilizados, como a agressão que Phil promove contra uma égua.
Todos os atores estão muito bem. A excelência recai no principal; soube-se que B. Cumberbatch não abandonou seu personagem um dia sequer, dedicando-se tenazmente ao papel que o exigiu integralmente. Jesse Plemons, o George, seu irmão na trama, é fundamental não só enquanto contraponto e coadjuvância, mas para que as contradições apareçam. Kirsten Dunst já não é mais a namoradinha de Peter Parker e sobressai num papel maduro, complexo, cujo final traduz uma herança que deve ser percebida pela maestria de Campion nos detalhes. Estes são imperiosos!
Ressaltemos o papel esquizotímico do leptossomático Kodi Smit-McPhee. Enquanto filho de Rose (Kirsten), tornará seu papel como o grande turning-point para que as pretensões de Jane Campion se completem. Vale a pena, também, notar a presença do veterano Keith Carradine, como governador e que, num diálogo, nos informa que o bronco (há um personagem referido apenas como o amigo Bronco Henry; não confundir!) Phil Burbank teria sido um ΦΒΚ (Phi Beta Kappa em Yale, uma menção honrosa…), algo entre o satírico e a convenção familiar que George sustenta enquanto ter sido seu irmão, bastante estudioso de filologia clássica. “Xingaria Phil o gado, em grego ou latim?”, ironiza o governador. São elementos constituintes do mote buscado por Jane.
Gênero e suas repercussões, oferecem à diretora, uma inusitada visita ao oeste-far, distante, que se perde no início do século passado e a indicação machista é reposta sob outros ângulos — e que o final apresenta como uma catarse pacífica em cenas de continuidade fantástica. São dez profissionais no Departamento de Edição e que dão mostras de exímios entendedores do que Campion solicita. Lá, em detalhe, o “livra-me da espada, e a minha vida do poder do cão”(Salmo 22:20).
Há ainda outros atores de realce como Paul Dano e Elizabeth Moss, irreconhecíveis. Não estão nos créditos. Alice Englert, filha de Campion, faz uma ponta. A atriz Frances Conroy, a “velha”, integra seu papel exatamente no que salientei acerca de uma pequena “herança” que deixará a Rose… Esta está para o filme como Peter, enquanto desfecho. Ambos se condicionam à vingança. A fala de Peter, na introdução do filme, contém tudo para se entender o final.
“Ataque Dos Cães” é imprescindível para quem passou a notar essa neozelandesa de Wellington. As paisagens escolhidas por Campion tem sua terra natal em cenas belíssimas, porém contidas. Uma referência shakespeariana perpassa a trama. Não raro, os atos compostos no filme traduzem, em muito, um suspense edípico, com o rodízio observável nas personagens que se mostram sob o império da inclusão-exclusão e cujo sofrimento começa a aparecer no alcoolismo de Rose (Kirsten) para apontar uma saída anestesiante — cuja cumplicidade é explorada por Phil (Cumberbatch). Na carta deste para a “velha” mãe, de lavra não compatível com sua tosquice, está lá o que pode promover essa mulher, recem-casada com seu irmão George: o suicídio de seu par (será?); uma referência à morte de seu ex marido, pai de Peter Gordon (Smit-McPhee). Desejo é o componente central esbanjado na tela…
Vale a pena um retrospecto da obra de Jane Campion. Sua especificidade nos detalhes é desconcertante. Cabe ainda ressaltar que a escolha do pianista Michael Laurence Nyman, veterano musicólogo e compositor minimalista (tanto está aqui como em O Piano), apenas como “orientador” e sem os créditos, é digna. Esse conjunto imagético-musical faz diferença e se compõe pelas mãos do não menos competente compositor, Jonny Greenwood e do diretor de fotografia, Ari Wegner.
Certeza de um bom espetáculo! As fotos abaixo carregam uma sutileza sem pretensão… Fugi como pude dos spoilers…
Enjoy
Virgilio Almansur é médico, advogado e escritor.