Miriam Waidenfeld Chaves
Em texto publicado em 1919, Lima Barreto faz uma pequena reflexão sobre sua experiência durante os poucos anos em que estudou na Escola Politécnica: “Desde muito que eu desejava abandonar o meu curso. Aquela atmosfera da escola superior, não me agradava nos meus dezesseis anos, cheios de timidez, de pobreza e de orgulho. Todos os meus colegas, filhos de graúdos de toda sorte, que me tratavam, quando me tratavam, com um compassivo desdém, formavam uma ambiência que me intimidava, que me abafava, se não me asfixiava. Fui perdendo o estímulo; mas a autoridade moral de meu pai, que me queria ver formado, me obrigava a ir tenteando […] Desgostava-me e era reprovado…” (1)
Pobre, preto e filho de um pai que sucumbiu à loucura e uma mãe que não resistiu à tuberculose – doença que à época tentavam atribuir às “fraquezas da mestiçagem, segundo Cesare Lombroso”(2) – o então filho de Amália e João Henriques não aguentou o preconceito e a pressão por sonhar um futuro que fugia à regra daqueles nascidos como ele. Ou seja, a Universidade era um lugar para branco, bem aquinhoado, filho de ministro, político, médico ou advogado.
Entretanto, acredito que esse sentimento de não pertencimento comece a mudar drasticamente com a aprovação em 2012 da Lei das Cotas que define a reserva de 50% das vagas das Universidades para os alunos oriundos da escola pública, majoritariamente pobres e pretos, assim como Lima Barreto.
Nos dias de hoje, quase uma década depois da existência da Lei, portanto, é fato que esta ágora, chamada Universidade, tornou-se mais democrática e multicultural. Finalmente, a torre de marfim do conhecimento ruiu-se e transformou-se em um verdadeiro espaço de inclusão e resistência.
Como professora da UFRJ, testemunhei essa mudança. Ao longo dos anos percebi que à minha frente tinha cada vez mais alunos da periferia, pobres e pretos. Assim como gays assumidíssimos! Alunos mais desenvoltos, opinativos, sem vergonha de se identificarem como moradores da favela. Alunos mais dispostos a defenderem suas opiniões e sua cultura.
Também confesso que para uma professora branca e da zona sul do Rio de Janeiro como eu, essa experiência foi igualmente vivida como um desafio. Desafio em me conscientizar que a autoridade do professor havia mudado e que, nesse caso, deveria ser construída de modo mais horizontal e menos vertical. Desafio em compreender que a realidade plural dos alunos exigia novas leituras e programas de curso.
Hoje aposentada, sinto saudades daquele espaço sagrado. Das minhas aulas de Sociologia da Educação, onde as opiniões eram sempre defendidas com paixão. Num verdadeiro ping-pong entre eu e os alunos e os alunos entre si.
A divergência corria solta. Alunos mais à direita, mais à esquerda, marxistas, e eu, mais bourdieusiana. Às vezes, o tom subia um pouco, mas depois tudo acabava bem. O que queríamos, era falar, debater idéias, trocar figurinhas, experiências. E com certeza, aquela diversidade me enriqueceu como professora, mas antes, como ser humano.
Hoje, através das notícias de jornal temo por esta conquista. Temo que o livre debate esteja ameaçado. Temo por meus queridos colegas que ainda permanecem no front, tentando ensinar, aprender, trocar idéias. Atos tão primários quanto respirar, enfim, viver.
Não deve estar sendo fácil!
Mas uma coisa é fato: na história tudo passará. E, neste momento, cabe resistir!
Notas da autora
(1) Citado por SCHWARCZ, Lilia M., Lima Barreto Triste Visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 142. Apud REZENDE, Beatriz e VALENÇA, Rachel (Orgs.), Lima Barreto: Toda crônica – Volume 1, 1890-1919. Rio de Janeiro: Editora Agir, Rio de Janeiro, 2004.
(2) SCHWARCZ, Lilia M., Op. cit, p. 57.
Miriam Waidenfeld Chaves é doutora em educação pela PUC-RJ e professora da UFRJ.