Cidadania, Corporativismo e Constituição: a PEC 5/21 e o MP

Por Alfredo Attié

Ao observar os ataques que são feitos pelos membros e pelas associações do Ministério Público à Proposta de Emenda Constitucional 5/21, tem-se a impressão de que o filtro do corporativismo e da impressão pessoal minou qualquer possibilidade de isenção crítica desses que praticam uma das funções essenciais à Administração da Justiça, afastando-os sobretudo da leitura simples do texto da proposta.

Praticar a leitura de um texto jurídico faz parte da formação e do cotidiano de todo jurista. É um passo simples na tarefa tão relevante de cumprir, interpretar e aplicar uma lei. Aliás, a própria adoção da palavra lei para designar o texto das normas, decorreu precisamente do fato de as antigas regras, emanadas dos governos, necessitarem ser lidas para seus destinatários, como modo de adquirir eficácia, e até mesmo validade, por meio do conhecimento comum do que havia sido ordenado.

Vamos, portanto, à leitura da PEC.

Em sua redação original,[1]ela pretendia modificar o artigo 130-A, que fora inserido na #ConstituiçãoFederal pela tão importante Emenda 45/2004. Esse artigo introduziu na ordem jurídica brasileira um órgão de controle administrativo do #MinistérioPúblico, seu #ConselhoNacional – CNMP.

Esse Conselho deve realizar o controle ou fiscalização administrativa e financeira do Ministério Público, bem como do cumprimento dos deveres dos Promotores e Procuradores, zelando pela autonomia funcional e administrativa do MP. Ele deve fazer isso, por meio da obediência às normas que regulam a Administração Pública (artigo 37 da Constituição) e da elaboração de um relatório anual, dando conta da situação dos órgãos administrativos do MP, bem como pelo conhecimento e julgamento de reclamações contra aqueles membros e esses órgãos, avocando processos disciplinares e impondo sanções administrativas. Da Constituição atual também consta que o Corregedor Nacional do MP será escolhido entre todos os membros do CNMP, por meio de votação secreta de seus membros.

Quem são esses membros, segundo a Constituição?

São oito oriundos dos próprios órgãos do Ministério Público: o Procurador-Geral da República, que preside o Conselho, quatro Procuradores do Ministério Público federal e três Promotores ou Procuradores dos Ministérios Públicos estaduais; e seis membros advindos de fora do MP: dois magistrados, dois advogados, indicados, respectivamente, pela magistratura e pela advocacia, e dois cidadãos indicados pelo Congresso Nacional, de notável saber jurídico e reputação ilibada (mesmos requisitos exigidos na indicação de Ministro do STF).

O que mudaria caso a PEC viesse a ser aprovada, em sua redação original?

Apenas três aspectos dessa composição. Primeiro, em vez de quatro, o Ministério Público federal passaria a indicar três membros, incluídos na escolha, os demais órgãos do MP considerados federais (MP do Trabalho, MP Militar); segundo, o MP do Distrito Federal participaria da escolha dos três indicados pelos Ministérios Públicos estaduais. Nada de novo, portanto, nessas duas correções de distorções causadas pela redação equivocada da Constituição atual. A terceira mudança era mais importante. O oitavo membro pertencente à própria corporação do MP passaria a ser indicado pelo Congresso Nacional, assim de maneira alternada pelo Senado e pela Câmara.

Em síntese, a composição permaneceria a mesma: oito membros internos e seis externos, a maioria ficando em mãos do MP. A única diferença estava em que um desses membros internos seria indicado pelo Congresso. Basta essa leitura isenta para demonstrar que a mudança não seria profunda, mas serviria apenas para aperfeiçoar o mecanismo da democracia representativa. É bem difícil imaginar que esse membro do próprio Ministério Público viesse a perpetrar alguma vingança contra o que quer que se imagine.

Muito bem, ao tramitar pelas Comissões do parlamento, o projeto inicial sofreu modificações, que expandiram e detalharam as mudanças pretendidas pelos congressistas, que nada mais são do que representantes do povo – e não usurpadores da autonomia do MP, como os ataques pretendem afirmar.

Vamos ler o que veio a se tornar a PEC[2] e discutir a pertinência das críticas.

Em primeiro lugar, a atual redação da PEC explicita o modo de os membros internos e externos do CNMP serem indicados, dizendo a que órgãos do MP e do Poder Judiciário, bem como do Congresso Nacional, incumbiriam as indicações, embaralhando um pouco, ao descer a detalhes, a atuação desses órgãos nesse processo, e restringindo a escolha do Senado e da Câmara, relativamente ao membro do MP que indicam alternadamente: somente ex-Procuradores Gerais poderão ser indicados. A seguir, inclui um décimo-quinto membro no Conselho: mais um representante do Poder Judiciário, agora indicado pelo STF e aprovado pelo Congresso. Há, então, regras procedimentais e de revisão pelo STF, explicitação de requisitos para a escolha dos membros e de garantias ao exercício de suas funções.

Aparece, contudo, o famigerado § 3°- F:

O Conselho Nacional do Ministério Público poderá, por meio de procedimentos não disciplinares, rever ou desconstituir atos que constituam violação de dever funcional dos membros, após a devida apuração em procedimento disciplinar, ou, em procedimento próprio de controle, quando se observar a utilização do cargo com o objetivo de se interferir na ordem pública, na ordem política, na organização interna e na independência das instituições e dos órgãos constitucionais.

Afirma-se, nas críticas e ataques, que seria o fim da autonomia do Ministério Público, que estaria entregue aos poderosos, com a restrição dos importantes ganhos que a atuação livre teria trazido ao País. Tanta responsabilidade para um artigo de lei é de espantar. A redação do dispositivo não é das melhores, claro, mas isso não significa que mereça os adjetivos que tem recebido, muito menos que não seja capaz de receber aperfeiçoamento e correção.

Os procedimentos de revisão e desconstituição não são disciplinares, isto é, não visam a punir ninguém. São apenas meios de correção e desfazimento de decisões tomadas pelos membros do MP, que o dispositivo entende serem divergentes daquilo que constitui o cerne da própria função constitucional do Ministério Público – que se faz de um rol extenso, que percorre desde a titularidade da ação penal ate a defesa de interesses individuais, coletivos e difusos. Essa função, na própria Constituição não possui uma definição restritiva. Pelo contrário, a função do MP abrange campos inclusive de concorrência com as atribuições inalienáveis da cidadania.

Muito bem, com relação a isso, o que parece pretender a PEC? Por cabresto no MP, enviá-lo ao corredor da morte?

Não, não se trata de retirar funções, muito menos de restringir seu exercício constitucional nem legal. O que o agente do poder constituinte derivado pretende é explicitar o controle sobre o exercício autônomo e independente – nos termos e nos limites constitucionais – dessa função.

Como? Por meio de um procedimento administrativo-constitucional e não por meio de ingerência de quem quer que seja. E um procedimento administrativo-co0nstitucional levado a cabo por um órgão que tem maioria de membros oriundos do próprio MP (8 a 7), e que está sujeito ao controle do STF.

E esse procedimento administrativo-constitucional somente se inicia após apuração e conclusão de processo disciplinar, que indique que o membro ou órgão do MP agiu de modo a utilizar o cargo não para executar a função do MP, mas:

“Com o objetivo de se interferir na ordem pública, na ordem política, na organização interna e na independência das instituições e dos órgãos constitucionais”.

Que há de vago em uma previsão constitucional dessa natureza, que refere com clareza a apuração, segundo o devido processo legal de um desvio, mau uso ou abuso de função, e determina não a punição do que agiu desse modo, mas a revisão absolutamente necessária dos atos ou decisões, o desfazimento dos malefícios que um ato ou uma decisão viciosos causaram? Quem é beneficiado por tal revisão ou desfazimento se não a própria cidadania, que não pode ser objeto de um desvirtuamento de uma função pública.

Ora, deixar tal poder de revisão e desfazimento para os mecanismos antigos de controle – que as críticas e ataques pretendem preservar, sem explicar a razão de se terem tornado tão ineficazes nos tempos difíceis que vivemos, de crise política, sanitária e de anticonstitucionalidade – é deixar de agir para aprimorar o Estado Democrático de Direito. Postos os termos do debate nessa base isenta e imparcial, a pergunta que remanesce é a relativa ao móvel de tantas acusações de membros e de corporações do MP à PEC.

Ouso trazer duas explicações, também simples.

A primeira diz respeito à falta de leitura do texto. Nesse caso, a crítica não tem fundamento algum e se torna mesmo antiética, por comentar alguma coisa que não existe, fazendo dela um monstro que aterroriza aqueles que estão longe do debate e que podem ser beneficiários ou vítimas da mudança constitucional.

A segunda explicação que forneço diz respeito a algo mais profundo, muito embora de fácil compreensão. Decorre dos defeitos sérios da educação ou ensino jurídico brasileiro. Isso se reflete na formação dos juristas, em geral, e de boa parte dos que desempenham as profissões jurídicas públicas, em particular, incluindo, portanto, os membros do MP.

Outro artigo pode ser dedicado a discutir essa segunda explicação e prometo voltar ao tema. Aqui, faço ressaltar brevemente apenas um aspecto dessa má formação: a ausência de conhecimento do Princípio Democrático e, em consequência, de apreço pela democracia.[3]

O Princípio Democrático está enunciado na Constituição Federal, e afirma que todo poder pertence ao povo, que o exerce direta, semidireta, e indiretamente por meio de representantes eleitos. Ou seja, a soberania é democrática, reside no povo e é guardada por seus representantes eleitos, quando não for exercida diretamente.

Ora, quem detém o poder também exercita o controle ou fiscalização daqueles que, em seu nome, o fazem. O MP e todas as funções públicas devem, constitucionalmente, submeter-se a esse controle. Não preciso lembrar que o MP não representa o povo, mas exerce funções que a lei lhe impõe. Esse exercício tem de ser fiscalizado.

A democracia é o poder do povo, numa fórmula simples, clara e objetiva. Portanto, nessa segunda explicação, as críticas feitas por membros e corporações do MP à PEC são anticonstitucionais e antidemocráticas.

O CNMP está longe de exercer o verdadeiro controle externo do MP. Mas a PEC 5/21 é um pequeno passo nessa direção. O objetivo um dia será alcançado, tenho certeza.

A democracia é a luz que prende a atenção da Constituição, e haverá de continuar a impelir seu passo em direção ao um verdadeiro Estado Democrático de Direito.

[1] Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1981273&filename=PEC+5/2021

[2] Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2086500&filename=Tramitacao-PEC+5/2021

[3] Examinei a questão no artigo ATTIÉ, Alfredo. “Corporativismo Estatal e Societal: Estatuto do Ministério Público e proposta de Defensoria-Geral da Justiça” in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Vol. 91, 1996, p. 221-261, hoje disponível em https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67336.

Alfredo Attié é Titular da Cadeira San Tiago Dantas e Presidente da #AcademiaPaulistadeDireito

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