Por Silvia Buarque – O Globo
“Harry Belafonte” era “amigo de Cuba”. Mas este depoimento não é sobre Cuba nem sobre política. Falo de nomes, nomes inventados, cidades inventadas, das brincadeiras com tudo isso. Harry Belafonte, para mim, era um nome tão bom que só poderia ser inventado pela cabeça do meu pai. Mas Belafonte existia, assim como as princesas com nomes falsos.
Quando eu tinha 10 anos, era apaixonada por “Força estranha”, do Caetano, na voz da Gal Costa. Quando tive que fazer uma prova de geografia muito decoreba, sobre municípios do Estado do Rio de Janeiro, meu pai me salvou ao fazer uma nova letra para aquela canção.
Só me lembro do começo. O original é: “Eu vi o menino correndo/ eu vi o tempo/ brincando ao redor do caminho daquele menino…” E vinha ele: “Existem cinco distritos/ em Cantagalo/ é o que tem mais gente e o resto eu já falo…”
O mais triste é que não guardei um manuscrito, porque era uma música inteirinha. Mas isso ilustra o lado lúdico do meu pai, presente em todos os lugares, para criar filhas também. Porque as coisas eram muito no mundo paralelo, no mundo dele.
Tinha um jeito de contar histórias para criança…
Por exemplo, quando contava da ditadura militar, dos opressores, dizia: “Os mandalhões.” Falava: “Os mandalhões não me deixam cantar a música tal no show.” A gente não sabia de tortura, de morte, mas sabia que tinha opressão, censura e “mandalhões”.
Tudo do meu pai é gozado porque é meio inventado. Somos parecidos. Não nisso. Eu gosto mais do mundo real, ele gosta das suposições. Ambos temos insônia, angústias, temos medo da morte, conversamos muito. Meu melhor amigo.
Vai, desse jeito desajeito que também é um pouco herança, minha declaração de amor. Mas o mais lindo foi ele cantarolar por dias, há anos, “Ev’ry time we say goodbye” (de Cole Porter). Perguntei o porquê da insistência. Ele respondeu algo como: “Porque, talvez, essa seja a música mais linda do mundo.”
Ele diz que fazer 80 anos não é mais que sua obrigação. Um beijo, meu pai.