Construir Resistência
Foto: Arquivo pessoal

Certas canções que eu ouço…

Por Desirée Rabelo

No futuro, quando contarmos sobre a #pandemia da #Covid-19, certamente as duas lembranças mais doloridas serão a das perdas dos entes queridos e da experiência de lockdown. Fomos separados, definitiva ou temporariamente, de nossas fontes de afeto e alegria.

Abraços de consolo estavam proibidos. Encontros foram suspensos. Uma parte importante de nossas vidas foi paralisada. Claro está que cada um experimentou as experiências de perdas ou reclusão de maneira distinta, inclusive segundo o lugar onde estava.

Aqui na #Espanha, entre 15 de março de 2020 e 21 de junho de 2020 vivemos um confinamento extremamente rígido. Com exceção de serviços essenciais, tudo demais foi fechado.

As ruas e praças ficaram completamente desertas. Lojas, hotéis, restaurantes, escolas, tudo cerrado. Porém, durante este intervalo de tempo, muitas iniciativas tratavam de resgatar a solidariedade e a cooperação que nos tornam humanos: mensagens de ânimo penduradas nas janelas, aplausos aos sanitários nos fins de tardes, músicas tocadas e cantadas desde as sacadas, confecção de máscaras gratuitas, listas de jovens oferecendo-se para fazer compras para os idosos…

Naqueles dias tão raros, marcados por nosso espanto e desconhecimento frente ao vírus, muitas pessoas partilharam o que tinham de melhor. E as campanhas de comunicação do governo central espanhol tratavam de reforçar a solidariedade:

“Este vírus lo paramos unidos” e “Un dia más, um dia menos” foram alguns dos slogans veiculados. Por tudo isso, prefiro recordar desse período como uma experiência de humanidade.

Mas, além disso, quando contar sobre minhas lembranças do confinamento, terei que mencionar uma canção. Não a escolhi – acho que foi o contrário.

O videoclipe chegou no meio da #quarentena, em um #WhatsApp enviado por uma amiga. Desde então não me canso de assisti-lo. No popular, diria que “a música grudou” na minha cabeça e também no meu coração.

À época, publiquei uma reflexão em minha página de #Facebook sobre a música. Mas, acho que vale a pena retornar. Atualizo o texto e compartilho com vocês “Foguete”, interpretado por #MariaBetânia, e, especialmente, a emoções que a gravação despertou em mim.

Primeiro, o ambiente. O tocador, os cantadores e ouvintes estão numa roda, provavelmente um quintal – um terreiro. Certamente na Bahia. Mas podia ser em qualquer lugar.

Percebam a magia do momento. As expressões dos presentes não deixam dúvidas sobre o imenso prazer que sentem. O violão e o canto soam suaves – não queremos incomodar dona Canô… Há quase uma reverência no ar. #CaetanoVeloso, sempre tão loquaz, cala-se. Apenas desfruta.

Nem sempre o encontro de amigos e violão produz essa mágica. Há nuances ou espíritos que precisam estar presentes. Sinto-me privilegiada por ter participado de vários e inesquecíveis rodas, mágicas como a do clipe.

Em Mato Grosso do Sul, a #MPB e as guarânias inspiravam a mim e também aos amigos – alguns deles hoje artistas profissionais. Em Minas Gerais, fosse em Belo Horizonte, em Pitangui e, certa vez, em Ouro Preto, muitas noites foram abençoadas por encontros musicais, serestas ao luar…

Fosse com o coral da #PUC, com companheiros ou os primos. Com esses, comparto um repertório único, que evoca lembranças nas canções repetidas tantas vezes. Como não cantar outra vez “Beijinho Doce” ou “Boate Azul” com os próprios tios tocando violão?

E cada nova geração traz novos cantores que seguem alimentando a veia musical familiar. Vivendo no Espírito Santo, tive menos oportunidades de participar de momentos como esse de Maria Bethania. Mas, sim, houve alguns inesquecíveis luaus nas praias de Itaparica, em Vila Velha; ou de Virtudes, em Guarapari.

E até em Barcelona pude experimentar momentos assim graças à voz e violão de alguns brasileiros generosos que por aqui estão e, também, ao #CoralVillaLobos. Que bom poder contar minha história por meio de encontros musicais.

No videoclipe, há outro momento que me emociona: aquele quando Bethania esquece a letra. Não estamos acostumados a ver essa cena. Em geral, preferimos disfarçar ou negar os esquecimentos e equívocos dos cantores e de todos nós.

Melhor não mencionar. Seguir frente. Superar, enfim. Mas ali acontece o contrário: todos percebem a hesitação da cantora, que é ajudada pelos presentes. Ela retoma o canto e ri de seu esquecimento. E todos riem juntos.

Em sua linda crônica “Para Maria das Graças”, #PauloMendesCampo ensina que “Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor:

uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros;

uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma;

por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões”.

Talvez a opção mais lógica do diretor do documentário fosse interromper a gravação e começar de novo. Mas, sabiamente ele percebeu que ali estava uma grande ocasião: testemunhávamos alguém perdoando e rindo de si mesma. E seguindo em frente.

Melhor ainda, seguindo com pessoas queridas. Não bastasse o ambiente da roda, a letra da música é inspiradora.

Diante da impossibilidade de fixar uma data para juntar a família ou rever amigos, separados por um oceano e por um vírus, nesses tempos de pandemia muitas vezes só me restava agarrar-se às recordações e à esperança. E cantar:

“Tantas vezes eu soltei foguete Imaginando que você já vinha / Ficava cá no meu canto calada /Ouvindo a barulheira / Que a saudade tinha”.

Lembrando de meu marido, meu filho e minha mãe, eu cantava baixinho:

“Nosso amor é tão bonito, tão sincero /Feito festa de São João”.

Para mim, que amo profundamente as festas juninas, não há metáfora mais bonita.

Muitos meses se passaram desde aquele tempo de confinamento. Voltei a estar meu marido e meu filho.

Minha mãe, contudo, partiu para outro plano, antes que nosso reencontro fosse possível.

Agora, só me restar ficar no meu canto, calada, ouvindo a barulheira que a saudade faz.

 

Nota da autora: A gravação de “Foguete” (de Roque Ferreira e J Velloso) é parte do documentário “Pedrinha de Aruanda”, de Andrucha Waddington.

Desirée Cipriano Rabelo é jornalista. Após aposentar-se na #UFES (Universidade Federal do Espírito Santo), onde lecionava e pesquisava sobre comunicação e mobilização social, partiu em busca de novos aprendizados. Atualmente vive em Barcelona, Espanha.

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