Cativeiro sem fim denuncia violência contra crianças durante o regime militar

Por Sonia Castro Lopes

Recontar a história, desvelar seus segredos, dar voz aos silenciados, lançar luz sobre episódios negados pela historiografia oficial, eis o papel do investigador.  À luz de novas teorias, o fazer historiográfico vai se processando a partir de diferentes olhares, utilizando-se de novas fontes documentais que, por sua vez, podem conduzir a distintas interpretações.  É no estreito diálogo entre teoria e empiria que se materializa a obra do historiador, mas não basta dominar a teoria se lhe faltar feeling para a pesquisa de campo.

Cativeiro sem fim – a história dos bebês, crianças e adolescentes sequestrados pela ditadura militar no Brasil – resulta de uma pesquisa de fôlego realizada por Eduardo Reina e comprova o que afirmei acima. Com formação no campo da comunicação social, o autor revela-se um historiador de ofício pela contribuição que fornece à historiografia sobre um período que, apesar de contar com uma expressiva produção bibliográfica, ainda oferece inúmeras possibilidades de investigação. Por isso, nunca será demais revisitá-lo.

Se existem abundantes documentos e narrativas sobre crianças sequestradas durante os regimes de exceção na América Latina, especialmente na Argentina, Chile e Uruguai, em relação ao Brasil o assunto ainda não foi devidamente explorado. Ao recuperar a trajetória de crianças e adolescentes que tiveram a infância roubada, a identidade comprometida e a perda de seus referenciais familiares, Reina avança na compreensão de um período crucial de nossa história. Recupera episódios negados pelas forças armadas, escondidos nos porões da ditadura empresarial-militar que teve início com o golpe de 64 e aniquilou os direitos, a honra e a vida de milhares de brasileiros.

O autor se alinha ao denominado jornalismo de redescoberta, um modelo de  jornalismo investigativo muito próximo à tarefa do historiador. Sem citar referenciais teóricos ou manifestar adesão a correntes  historiográficas, Reina vai nos apresentando aos excluídos, aos que vem ‘de baixo’, aos que  nunca tiveram lugar nem voz na história. Desvenda segredos acobertados por muito tempo dos quais só possuíamos vestígios e  persegue esses rastros movido pelo desejo de buscar fatos que façam avançar a história. Não houve aqui  necessidade de mencionar o ‘paradigma indiciário’ de Carlo Ginzburg (1) como arcabouço teórico para sustentar a análise dos fatos. O paradigma está lá para quem quiser ver como um método de conhecimento cuja força está na observação de pormenores reveladores que passaram despercebidos para muitos pesquisadores.

O minucioso trabalho de pesquisa amparou-se em uma rigorosa revisão de literatura que incorpora obras jornalísticas, históricas e literárias, além de uma vasta produção acadêmica sobre o tema. Foram mobilizados documentos institucionais como os do Centro de Informação do Exército (CIE) e os relatórios de diversas Comissões da Verdade, além de diversas reportagens publicadas em jornais de grande circulação no país. A essas duas categorias de fontes foram acrescentados depoimentos obtidos após longa peregrinação às regiões onde os episódios aconteceram, o que permitiu ao autor realizar a triangulação de dados necessária à compreensão e análise dos fatos narrados.

Ao todo foram dezenove as vítimas de sequestro e apropriação pelos militares. Do total, onze casos ocorreram na região do Araguaia entre 1972 e 1974, todos filhos de guerrilheiros e camponeses que aderiram ao movimento. Destes, seis eram adolescentes que foram encaminhados aos quartéis onde se processou um trabalho de cooptação e lavagem cerebral. Havia ainda quatro crianças, uma delas filha de um conhecido guerrilheiro filiado ao PCdoB, Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, morto em 1974 e um bebê de poucos meses que foi encaminhado a um orfanato em Belém. Além das vítimas do Araguaia, foram relatados outros  casos ocorridos no Rio de Janeiro, Paraná, Pernambuco, além do sequestro e desaparecimento de cinco crianças indígenas em Mato Grosso.

Há que se registrar as dificuldades enfrentadas pelo investigador durante a realização do trabalho, especialmente na região do Araguaia, onde a memória coletiva registra atos de vigilância e intimidação feitas por membros do exército até o início deste século. Assim, o receio de retaliações comprometeu o depoimento de vários sujeitos que poderiam esclarecer e fornecer mais pistas sobre o crime cometido pelos militares contra os menores sequestrados.

Apesar dos problemas relatados, os depoimentos permitem constatar como a oralidade é capaz de nos revelar o indescritível e toda uma série de realidades que raramente aparecem nos documentos escritos, seja porque são consideradas insignificantes ou inconfessáveis, seja porque são impossíveis de se obter por meio dos registros tradicionais. O contato com as testemunhas nos permite interpretar silêncios e esquecimentos, hesitações, lapsos, situações de extremo abandono. Impossível não nos comover com a história de Juracy, o menino sequestrado por engano que foi torturado e entregue à adoção por pessoas que nunca lhe dedicaram afeto, ou com a narrativa de Rosangela que apenas recentemente teve conhecimento da adoção e até hoje desconhece sua origem e a própria data de nascimento.

Recorro a Michel de Certeau (2) para aplicar nessa guerra cruel os conceitos de tática e estratégia por ele cunhados e que me vieram à mente enquanto lia o livro de Eduardo Reina. Para o historiador francês, estratégia supõe uma posição dominante, trata-se do procedimento de quem manipula as relações de força e poder, no caso o exército brasileiro. Já a tática seria o movimento dentro do campo do inimigo, no espaço por ele controlado, a arte do fraco, ou seja, operações que dependem da surpresa e da astúcia. Essas categorias analíticas aparecem claramente diante do relato do forte aparato militar empreendido pelo exército brasileiro para abater 69 guerrilheiros munidos de armamentos precários e escassos.

Mas não bastou ao exército capturar e matar de forma cruel os “subversivos” que ameaçavam a soberania nacional. Eles foram além. Mataram camponeses, mulheres e tantos outros que cooperaram ou tiveram envolvimento com os guerrilheiros. Sequestraram e se apropriaram de crianças e jovens como forma de cooptação e pressão para chegar até os pais ou mesmo evitar que fossem ‘contaminados’ pelas idéias dos que se opunham e resistiam à ditadura.  As noticias sobre a guerrilha quase não eram divulgadas, as estratégias do exército no combate aos guerrilheiros sequer eram mencionadas. Tratava-se de um segredo. Como afirma o autor, “o sequestro de crianças era um segredo dentro de um segredo.” Acredito que a melhor homenagem que se pode prestar a essas vítimas  esquecidas é transformar sua memória em história. Foi o que Eduardo Reina fez.

 

Notas da autora:

(1) Carlo GINZBURG. Mitos, emblemas, sinais – Morfologia e História. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. Trad. Federico Carotti.

(2) Michel DE CERTEAU. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.

 

Sonia Castro Lopes é historiadora e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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