Por Miriam Waidenfeld Chaves
A cidade, no Sul de Minas, tinha a Mantiqueira como guardiã. Seus pinheiros centenários compunham um paredão em torno da cidade, que cresceu isolada e estrangeira.
O vento, quando ali soprava, fazia as araucárias uivarem como um lobo do mato. No inverno, o som eletrizante dessa ventania comandava uma verdadeira orgia na serra. E, ao se espalhar pela cidade, embalava seus moradores em um sono para lá de agitado.
Nessas noites, de muita geada e letargia, os fazendeiros de café, ao receberem em seus casarões os convidados para um carteado, sabiam que a jogatina teria que acabar cedo. E antes de o vento começar a uivar, todos já deveriam estar em suas camas prontos para recebê-lo.
Cortava a galope algumas fazendolas, atravessava o Sapucaí em segundos e, finalmente, ultrapassava a velha fábrica de doces Vera Cruz para assim poder chegar ao Mercado Municipal. Ao cruzar seus corredores abertos, passava pelos vãos livres da construção e, como um azougue, corria desenfreado para a Praça da Matriz. Ali, ganhava fôlego, levantava seu último voo e espalhava sua música pelo arredor.
É fato que o perfume adocicado dos brincos de princesa, dálias e bocas-de-leão dos canteiros da cidade também contribuía para o vento, em julho, cumprir a sua sina. A combinação desses cheiros com o zumbido do vento inebriava o ar, penetrava nas casas e invadia o sono dos moradores que possuídos por esse feitiço pareciam viver histórias extraordinárias.
***
E se até agora ninguém havia ousado tocar nesse assunto, D. Carminha, num domingo qualquer de julho, acordou disposta a mudar o rumo dessa história.
Nesse dia, em seu alpendre, na Rua da Matriz, com uma caneca de café coado na hora nas mãos, olhou para os sinos da Catedral e resolveu tornar públicos os segredos daquela cidadela, adormecida pelo barulho do vento.
Quando esse fato acorreu, D. Carminha tinha 102 anos e havia se tornado a única testemunha viva dos efeitos desse vento estrambótico nos moradores. Muitos acharam que ela talvez estivesse querendo se vingar, difamando algum desafeto já morto e enterrado. Outros disseram que a sua idade avançada pode ter lhe dado coragem para confessar o até agora inconfessável e, por último, as más línguas juraram que minha bisavó estava mesmo era variando.
Os seus vizinhos, entretanto, acreditaram que ela, plena de suas capacidades mentais, tenha apenas decidido falar pelo simples prazer de prosear, coisa que raramente acontecia devido a sua bronquite crônica.
Começou, então, me dizendo que o vento não soprava mais como antigamente. E se desconfiei de que sentia falta desse cão dos infernos, pois era assim que se referia ao vento, o seu jeito matreiro de ser impediu que eu comprovasse essa minha hipótese.
Depois, contou-me que a cidade, durante o mês de julho, ficava irreconhecível. Era a ventania que, ao anunciar a sua chegada, derrubava algumas araucárias sobre a única estrada que ligava a cidade ao resto do mundo. Enfim, uma verdadeira barreira de troncos, folhas e frutos permanecia ali no meio do caminho, impedindo os moradores de saírem de Cachoeira do Alto.
Assim, sem testemunhas, o vento agia como bem lhe aprouvesse, brincando e zoando daquele que a esmo escolhia azucrinar. D. Carminha também me revelou que a maioria da população apreciava a sua visita. Esses, apesar do frio, faziam questão de deixar as janelas abertas para recebê-lo com toda a pompa e circunstância. Outros, mais temerosos, relutavam admiti-lo em suas casas e cobriam-se até a cabeça, tentando evitá-lo a qualquer preço.
Entretanto, como D. Carminha bem frisou, durante a madrugada alta, a população, já contaminada pelo vento, saia às ruas e deixava-se perder pela cidade. Voltava para casa transtornada.
Mas, quando o primeiro raio de sol aparecia atrás da serra, os moradores logo corriam até a igreja para se confessar. E como não se lembravam nadinha de nada desse frenesi, muitos ainda se dirigiam ao Mercado Municipal em busca de uma pinga. Acreditavam que assim poderiam recobrar a memória perdida durante a noite anterior.
Depois de algum tempo escutando esse relato em silêncio, ousei argumentar:
– Bisa, mas até agora a senhora só me embromou. Eu tô louca é prá saber sobre as aprontações desse vento nos moradores daqui.
– Ah, minha filha, prá isso, você vai ter que ir até a minha cristaleira pegar uma garrafa que tá bem ali dentro, escondidinha. Só café, agora não basta!
***
– Êta coisa boa, disse minha bisavó, na época. E com os seus olhinhos virados de felicidade, confessou-me:
– É ela que atiça a minha memória.
E assim, embalada pela amarelinha, recomeçou:
– Nessas noites, esse cão dos infernos virava Cachoeira do Alto pelo avesso. E tudo começava quando a filha do prefeito, meio amalucada, e por isso mesmo morava na fazenda, isolada, pegava sua égua Rainha, e nua, com um berrante nas mãos, galopava até a cidade. Com os cabelos longos e soltos ao vento, parecia que anunciava a chegada do excomungado na cidade.
Nesse momento, deu uma respirada, bebeu demoradamente mais um gole da pinga e a partir daí não parou mais.
Contou-me que as pessoas de pijamas se divertiam a valer no Clube Cachoeirense. Enquanto o prefeito costumava dançar um tango atrevido com sua amante Maricota, que não tirava o sorriso da cara de tanta alegria, Maria de Lourdes, sem perder a pose, de piteira, jogava baforadas e mais baforadas de fumaça na cara de todo mundo que encontrava pela frente.
Falando baixinho, ainda revelou-me que uma tal de Paula, sem mais nem menos, tirava a roupa, junto com suas amigas Ítala, Tetê e Vivinha e, numa roda, dançavam, felizes, até o amanhecer. Havia também a Dona Mimi, muito engraçada, que quando começava a tirar os coelhos da cartola, não parava mais.
Sem perder o fôlego, me afirmou que, na mesma hora em que acontecia esse fuzuê no Clube, do lado de fora, na praça, Álvaro e Benedito, os maiores fazendeiros da região, eram chicoteados. Disse-me, constrangida, que suas esposas assistiam a esse espetáculo extasiadas.
Perguntei quem batia neles e ouvi a seguinte resposta:
– João, o empregado de Benedito, neto de uma preta velha, ex-escrava, respondeu com naturalidade para logo em seguida continuar:
– Zizinha aproveitava que seu marido estava no Clube e convidava Lindolfo para entrar em sua casa. Sofia, mulher de Lindolfo, por sua vez, que sempre fora um tanto sui generis, não gostava de ir dançar no Clube de pijama. Colocava um vestido de oncinha no corpo, que tinha guardado no fundo do armário, e zarpava para outra festa, mais apimentada.
Por último, ainda me contou que o Padre Joãozinho, nessas noites, abrigava-se no porão da Igreja, junto com a sua bíblia, pois morria de medo do vento. Às cinco da manhã, os sinos da Catedral tocavam anunciando o dia e, finalmente, o cão dos infernos recolhia-se na serra para o seu cochilo matinal. A cidade, então, despertava para mais um dia qualquer.
Ao final daquela prosa, minha bisa, ao observar as folhas da mangueira voando pelo quintal, pediu o seu xale e de chofre me disse:
– Hoje à noite, o vento vai soprar forte, como há muito tempo não ocorre. E aí, cê vai deixar as janelas abertas?
Em seguida, entrando na sala, gritou:
– Zezé, tô com fome. A que horas sai o jantar?
Miriam W. Chaves é contista e professora da UFRJ.