Por Amaro Augusto Dorneles – do Diálogos do Sul
Palácio dos Bandeirantes vai abrigar defensor de ditador, ex-integrante da Rota, político acusado de corrupção no melhor estilo da extrema-direita
No sincopado embalo da transição do governador carioca Tarcísio de Freitas no Palácio dos Bandeirantes, em São Paulo, tem espaço para figuras como a do deputado que quis homenagear o ditador Augusto Pinochet na Assembleia e insultou o papa Francisco e o arcebispo de Aparecida chamando-os de ‘vagabundos’; a do ex-oficial da Rota na época dos banhos de sangue na periferia e é contra o uso de câmeras no uniforme dos policiais. São Paulo merece isso?
Enquanto a nação acompanha pela mídia as escaramuças das hostes bolsonarianas na guerra militar por um terceiro turno – depois de perder a eleição no voto –, na transição para o novo governo de São Paulo, o que vemos é ao contrário, o clima é de paz e amor
O PSDB, que largou o osso depois de 28 anos – troca figurinhas com Tarcísio de Freitas, bolsonariano do partido que se diz Republicano. O vice é Felício Ramuth (PSD). Plantado pelo ex-capitão no Palácio Bandeirantes, o carioca da gema saiu melhor do que a encomenda. Passou por cima do milenar preconceito quatrocentão contra nascidos na Guanabara. E por enquanto nada de braçada como se estivesse no Guarujá.
Antes de mesmo da posse, ele já aprovou reajuste de 50% para a elite do serviço público. E para ele mesmo: o salário pula de R$ 23 para R$ 34 mil. O governador eleito está saindo melhor do que a encomenda. O Delegado Olim (PP) — relator do orçamento na Alesp — enalteceu o aumento à elite, em prejuízo dos salários baixos: “Estou aberto para discutir os ajustes que ele (governador) quiser”. Tudo no mais clássico estilo bolsonariano: nada para raia miúda.
A bancada do PSOL não engoliu essa e ressaltou que o aumento de 50% é só para servidores que ganham o teto! A medida, com a outra mão, tira a possibilidade orçamentária de reajuste futuro para quem justamente ganha menos e mais precisa.
Até o governador em exercício de São Paulo, Rodrigo Garcia (PSDB), vice de João Doria resolveu apoiar o carioca. Desde o começo da campanha, a promessa foi montar um governo técnico e competente — diametralmente oposto ao de Bolsonaro, que se cercou de aproveitadores e nulidades de seu quilate na máquina pública. Freitas se apresentou no pleito como nome capaz de fazer frente às investidas do ex-capitão nos postos de trabalho do serviço público estadual.
Em 22 de novembro, Eduardo Bolsonaro (PL) encontrou-se com o dono do Bonde. A missão: negociar-extorquir a participação da “familícia” nesse rico latifúndio. Além de receber o quase diplomata, o novo governador paulista conversou com muita gente da mesma patota: Gil Diniz (PL) e Joaquim Leite, atual ministro do Meio Ambiente — cotado para ocupar o mesmo cargo em São Paulo (preparem-se!) — entre outros amigos, todos em busca de um cargo de secretário estadual, como Cesinha Madureira (PSD-SP), além de “infalíveis” líderes da bancada evangélica.
Epidemia de Ciúme e Cerejinha
Tudo o que editorialistas da mídia hegemônica e quase metade dos paulistas mais temiam se tornou real. Com a porteira aberta, ficou mais fácil a boiada arrombar a festa do capitão Tarcísio. Em 23 de novembro, Afif Domingos, coordenador da transição de Tarcísio, anunciou 105 nomes para a equipe de transição.
Mas a “cereja do bolo” estava reservada para dois dias depois, quando Gilberto Kassab, ex-prefeito da capital, presidente do PSD, foi anunciado como Secretário de Governo e que será encarregado de tratar a relação do Palácio Bandeirantes com a Assembleia Legislativa e, principalmente, com o Palácio Alvorada. Há meses ele costura um bom espaço no governo do PT e aliados. Sob sua responsabilidade, fica, igualmente, a área de articulação institucional e política do governo estadual.
Como seria de supor, a ascensão de Kassab provocou uma epidemia de ciúme nas fileiras do governo que diz adeus — nunca mais. Inconformados de se verem destronados, a tigrada esperneia. Os mais indóceis pressionam pela revisão da escolha.
A partir de 2023, seguidores do ex-presidente vão depender do presidente do PSD para faturar algo no estado. De origem libanesa, ex-ministro de Dilma Rousseff e Michel Temer, o homem forte de Tarcísio de Souza é economista, engenheiro civil, empresário, corretor de imóveis e político de rara habilidade.
Casualmente, o último cargo político que exerceu foi o de Secretário da Casa Civil do Estado de São Paulo, em 2019, na gestão João Doria (PSDB). A recordação não é boa. Ele durou apenas três dias no emprego do governo. A edição do Diário Oficial do Estado trouxe decreto em curtas duas linhas autorizando o “afastamento” do secretário para “tratar de assuntos particulares”. Isso porque ele foi acusado de corrupção envolvendo a empresa JBS. Operação da Polícia Federal encontrou R$ 300 mil em sua residência. Em delação, foi acusado de receber propinas entre 2010 e 2016.
Homenagem a ditador
O que não falta é seguidor do presidente de saída querendo mudar de mala e cuia para Sampa. Tem até os evangélicos com promessa de serem aproveitados em áreas sociais. Nada mais lógico, afinal, eles sabem como induzir fiéis desesperados a fazerem doações para deus – que sabe retribuir como ninguém.
Na infraestrutura, o espaço em princípio deve ser ocupado por nomes da confiança de Tarcísio. Pois é, mas mesmo com fama de “técnico”, ele escalou uma ‘joia’ do pensamento bolsonariano: Fernando Dávila, deputado estadual (PSL), e que é cotado para Companhia de Entrepostos e de Armazéns Gerais de SP, CEAGESP.
D’Ávila ficou marcado em 2019 ao propor uma solenidade, na Alesp, para homenagear o mais sádico ditador do Novo Mundo, Augusto Pinochet. Que ninguém acuse essa “gema” de falta de coerência. Um ano depois, D’Ávila insultou o papa Francisco e Dom Orlando Brandes, arcebispo de Aparecida, chamando-os de “vagabundos”.
Reprodução/Twitter
Não deve ter sido à toa que escolheram a Pauliceia para ser cenário do filme “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago
Guerra PM X Direitos Humanos
Uma das piores notícias que humanistas e antagonistas do governador de São Paulo poderiam ter vem da Secretaria Estadual da Segurança Pública, onde desponta m bolsonariano de firma reconhecida pra vaga de secretário: Guilherme Muraro Derrite.
Deputado Federal (PL) desde 2014, é o que se pode chamar de “extrema-direita puro sangue”. Ex-oficial da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), entre 2010 e 2013, integrou o grupo de elite da PM no período mais sangrento. “Era um grupo de assassinos fardados e mascarados”, define o jornal “Esquerda Diário”, do Movimento Revolucionário de Trabalhadores, MRT. De acordo o jornal, o grupo se tornou conhecido por chacinas com grande número de assassinatos, especialmente durante a guerra entre a PM e o PCC, em 2012.
Em comunhão com o governador carioca de SP, Derrite aproveita a vaga na equipe de transição para “arrumar sua cama” na Segurança Pública a partir do ano vindouro. Por motivos “óbvios”, é radicalmente contra o uso de câmeras nos uniformes de policiais militares, já que é defensor do direito de matar impunemente.
O deputado ainda tem a pachorra de declarar à mídia que a câmera “inibe a atuação dos agentes” da repressão. Deve ter inveja da matança diária no Rio de Janeiro… E mais: o tira parlamentar, antes mesmo de ganhar a sorte grande, ele já propagandeava sua posição contra a realização de audiências de custódia, que servem para avaliar a legalidade e a manutenção das prisões feitas pela polícia que, em tese, deveria zelar pelo cidadão.
(Des)educando
Já quem acredita que investir em Educação é torrar dinheiro público, deve estar exultante com a possível indicação do novo secretário paulista, Renato Feder.
Feder é ultraliberal, dono da Multilaser — revendedora de informática da China — e grande defensor da privatização da Educação.
Em 2019, aos 42 anos, assumiu a Secretaria da Educação e do Esporte do Paraná. Antes, foi assessor técnico da pasta no estado de São Paulo, entre 2017 e 2018.
O empresário chegou a ser cotado por Bolsonaro (!), em 2020, para substituir Carlos Alberto Decotelli — um dos ‘ministros-relâmpago’ da Educação — defenestrado por falsificar seu currículo.
Desígnio Divino + Santo de Fé
Para a secretaria das Mulheres, a mais cotada é Sonaira Fernandes (Republicanos), eleita vereadora de São Paulo com mais de 17 mil votos. Na Câmara, ela defende a pauta de liberdade econômica, pequenos empreendedores, trabalhadores, fé e princípios cristãos.
As coisas mudaram em sua vida em 2014, quando fez estágio na Polícia Federal. Em seu currículo, consta que “por obra do destino, ou designo divino, fui encaminhada para estagiar com o então escrivão Eduardo Nantes Bolsonaro”. O santo dessa baiana nascida em Riachão do Jacuípe, em 1990, crescida em “Pé de Serra”, com 20 mil habitantes, perto de Feira de Santana, deve ser poderoso.
Seus caminhos se abriram mesmo. Tímida, logo foi convidada a participar do comitê de campanha de Eduardo Bolsonaro, que disputava vaga na Câmara Federal pela primeira vez, em 2014. Após a surpreendente eleição, Sonaira foi convidada a integrar a equipe do novo deputado.
Sonaira morou em Brasília, onde conheceu o mentor do maior esquema de rachadinhas já descoberto no Brasil e foi convidada por Jair Bolsonaro para fazer parte de sua equipe e a participar de sua campanha presidencial em 2018, quando Eduardo foi reeleito deputado federal, com quase 2 milhões de votos.
Não deve ter sido à toa que escolheram a Pauliceia para ser cenário do filme “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago. Depois de quase 30 anos sustentando vigaristas emplumados de bico longo e asas curtas, a maioria preferiu cair nos braços de um arrivista como seu antecessor, João Doria. São Paulo não merece tanto.