Bom dia, 2022

Por Miriam Waidenfeld Chaves

Depois de uma viagenzinha até a Patagônia para escapar dos quatro ventos do carnaval brasileiro, Cecília desembarcou no Aeroporto Internacional meio grogue devido aos dissabores do vôo de volta.

Ainda no avião para o Rio de Janeiro, pensou que o chá de cadeira no Aeroporto de Bariloche e depois a escala em São Paulo para a troca de aeronave não iriam estragar os dias magníficos que passara fazendo trilhas pelo Lago  Nahuel Huapi.

Na dúvida de quando e como chegou em casa, Cecília só sabe que foi em fevereiro e que no dia seguinte dormiu a tarde inteira. E quando deu por si já era abril.

Sem sair de casa, cozinhando, fazendo faxina e encontrando os amigos apenas pelo whatsapp, Cecília perdeu a noção do tempo.

Sempre que acordava, não sabia mais se era sábado, domingo ou segunda. Demorava uns dez minutos para descobrir. Na outra semana, escreveu uma carta para um amigo e a datou como sendo dia 10, quando Eduardo, ao telefone, lhe avisou que já estavam no dia 16.

Sim, nesse ano esdrúxulo de 2020, Cecília inventou de escrever cartas para Eduardo, pois os dois amigos descobriram que  valia tudo para brincar com a vida naquele ano tão esquisito. Até escrever cartas à mão.

Portanto, toda terça-feira, Cecília atravessava a rua  para deixar na portaria do amigo a sua carta. No sábado, era a vez de ele entregar a sua – falavam sobre a vida e a solidão – para Cecília que, inclusive, se deu conta de que essa diversão tornou-se um excelente marcador de tempo para ela.  Quando a saudade das cartinhas do amigo apertava, Cecília logo concluía que o fim de semana  estava próximo e daí corria até o interfone  para perguntar ao porteiro se sua correspondência já havia chegado.

Houve um dia em que Cecília acordou e se deu conta de que era novembro, mês de seu aniversário. Quantos anos ela estaria fazendo? Tinha se esquecido. E aí teve que pegar sua carteira de identidade para conferir. Levou um susto.

Veio o Natal, o Ano Novo e o Carnaval outra vez. E não se lembrava mais do que havia feito nessas datas. Ficara em casa sozinha, disso tinha certeza. Mas, ceou pelo zoom? Houve queimas de fogos pela televisão? E no Carnaval? Dormiu ou sambou pela casa para se exercitar um pouco? Deu branco.

Lembrava-se apenas daquela imagem simbólica do Papa Francisco sob uma chuva fina, sozinho, diante da Basílica de São Pedro, rezando e abençoando os fiéis de todo o mundo, frente àqueles tempos tão funestos. Ah, mas isso foi em março!

Muitas vezes, Cecília sentiu-se como se estivesse no filme De volta para o futuro. E o pior é que ela tinha detestado esse filme. Mas, filme é filme, realidade é realidade, que quando está difícil, é dura de aguentar, pensava. Principalmente porque ela não sabia se tinha ido para o futuro ou se tinha voltado para  o passado. No caso do Brasil, tinha certeza de que  havia retrocedido algumas boas décadas.

Por outro lado, também acontecia de ela dormir e acordar com título de eleitor na mão, doida para ir votar, pois jurava que despertara em pleno  outubro de 2022. Depois, se dava conta de que o ano vigente ainda era 2021. Mas, quem sabe, não tirava uma soneca e de repente quando desse por si já seria o ano tão esperado.

Uma vez leu o livro Sobre o tempo que lhe causou espanto.  Lá dizia que o tempo não existia. Na verdade, já sabia que o tempo era uma invenção do homem. Assim diziam os físicos, mas, na verdade, sempre se perguntou  como seria viver sem contar o tempo. As 24 horas do dia, a semana, os meses, os anos, as décadas. Os séculos. Principalmente ela, que era historiadora e tinha o tempo como sua matéria prima.

Passado, presente, futuro. Futuro, passado, presente. Presente, futuro, passado. Qual a ordem desses tempos? Depois de muito embatucar, Cecília decidiu que iria viver todos esses tempos de uma vez só e ver no que isso iria dar. Decidiu ainda que iria fazer como os índios Sioux, que não dispunham de nenhuma palavra para expressar ‘tempo’. Nenhuma palavra que significasse ‘atrasado’ ou ‘esperar’.

Depois dessa decisão, Cecília mudou. Encapsulada em seu apartamento, passou a existir como se o tempo não existisse. Seus amigos acharam que tinha ficado meio amalucada.

Entretanto, alguns deles concluíram que essa poderia ser uma boa ideia e até pensaram em adotá-la.

 

Miriam W. Chaves é contista e professora da UFRJ.

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