Bituca não canta mais. Mas, como a maria fumaça, deixou em mim “um grito, um ai”

Por Hélio Alcântara

Marcos Hermes / Divulgação

Ontem, quando estava na plateia da última turnê dele, aqui em São Paulo, vivi uma sequência de sentimentos amontoados, como se um trem estivesse me atravessando e levando rios, abraços e morros velhos, antigos, cheios de amor e histórias de amizade em meio ao pó da estrada.

É quase triste vê-lo sem se mexer com desenvoltura, com dificuldades no andar e lutando contra a voz que sempre esteve à mercê de seus desejos. Mas, ao mesmo tempo, é emocionante presenciar a dignidade da luta, a gana dentro dele querendo permanecer forte.

Bituca nos confortou nos períodos duros em que tivemos de enfrentar a ignorância e a força bruta, especialmente nos anos 1970 e 80. E, junto com Caetano, Gil, Edu e Chico, nos guiou de verdade. O que vi, ontem, foi a celebração da vida, uma espécie de libertação da plateia que o ovacionou, não pelo que cantou, e sim pela presença e permanência de quem acredita na vida, como Maria.

Sim, ele podia ter se pronunciado politicamente nesse momento tão difícil, dito qualquer coisa, mas não consigo criticá-lo, e, de verdade, acho que não devemos cobrar isso dele, prestes a fazer 80 anos e com a saúde debilitada.

Intuo que a plateia de ontem, no ex-Espaço das Américas, sentiu que não deveria fazê-lo e passou, ela mesma, a gritar “Fora, Bolsonaro” e, no final do show, a entoar um cântico de amor ao próprio Bituca, como se ele representasse nossa esperança de enterrar, no próximo outubro, a ignorância e o retrocesso violentos que permanecem. Era como se dissesse “Bituca, nós te amamos e queremos te agradecer por tudo o que fez por nós ao longo de décadas”.

Foi assim que eu vi Milton Nascimento, essa entidade poderosa, em sua “Última Sessão de Música”.

 

Hélio Alcântara é jornalista e escritor. Autor do livro Wladimir, sobre o lateral corintiano

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