Por Lela Beltrão, fotógrafa e ativista
Mulher, mãe, trabalhadora, militante. Ouvir Beatriz Parreiras é uma inspiração. Dessas mulheres que abrem caminhos. E sabemos muito bem que ser mãe solo e trabalhadora no Brasil é uma maratona intensa e desleal. São muitas fotos e muitas histórias que ela tem para nos contar.
Aqui vamos destacar uma imagem famosa que até ano passado não tinha a sua autoria conhecida. Nela, o guerrilheiro Lamarca aparece dando treinamento de tiro às mulheres que eram caixas de banco. Lamarca foi líder da luta armada contra a ditadura militar e desertou do exército brasileiro em 1969, dias depois da fotografia feita por Bia e da decretação do AI-5. Uma foto histórica.
Tem imagens que ganham vida própria. Se espalham por vários meios e chegam até milhares de pessoas que não fazem a menor ideia de quem estava por trás da câmera na hora do clique. Nos anos 60 ainda não existia a lei 9.610/98 que consolidou a legislação sobre direitos autorais, obrigando todas as pessoas que utilizam fotografias tiradas por alguém a indicar, de forma clara, o nome do autor.
Pedimos pra Bia nos contar um pouco sobre esse dia, sobre sua trajetória na fotografia e como ser mulher e fotógrafa em tempos de ditadura.
Como você começou na fotografia?
Comecei a fotografar passeatas em 1968. Saía com minha Asahi Pentax pendurada no pescoço e um saquinho de bolinhas de gude para derrubar os milicos dos seus cavalos. Essa câmera eu tinha comprado com o dinheiro que ganhei fazendo Pesquisa de Mercado. Comprei também um ampliador usado, então fotografava e revelava as minhas próprias fotografias. A essa altura eu fui convidada para fazer um estágio no Jornal Última Hora, em São Paulo.
Como também gostava de teatro, fotografei muitas peças do Teatro de Arena e Oficina e vendia as fotos para os atores. Eu guardo esses negativos até hoje. Em 1969 ganhei o Quarto Prêmio Mundial de fotografia no Japão com uma fotografia de Teatro e me convenci de que eu era uma fotógrafa. Foi então que o J. Godoy (editor do Jornal Folha De São Paulo) me convidou para ser sua assistente em um dos maiores estúdios de fotografia de São Paulo. Foi lá que eu aprendi muitas técnicas.
Sabemos que o fotojornalismo sempre foi uma área mais masculina e mesmo machista, como foi ser mulher fotografa na década de 60?
Quando eu falei para o meu pai que eu queria ser fotógrafa, ele respondeu: mas isso é profissão para homem.
Eu subverti todas as expectativas da minha família de ser uma pessoa dentro dos padrões tidos como normais para uma mulher em 1967. Eu fazia teatro Universitário, o TUCA, participava do movimento estudantil e lia Sartre, Simone de Beauvoir e Marx. Nessa época morava com uma tia, professora universitária e intelectual, que sempre me apoiou e foi a minha salvação.
Eu sentia o machismo na profissão mas ignorava. A coisa que mais me incomodava era quando os fotógrafos me embarreiravam em grandes eventos e eu não conseguia espaço na linha de frente. Sempre tinha um grupo de armários enormes que eu jamais conseguia transpor e foi assim que resolvi arrumar brechas por baixo. Ia abrindo caminho entre as pernas dos grandalhões. Algumas vezes acontecia das autoridades a serem fotografadas me descobrirem ali embaixo e ficavam chamando atenção do grupo para mim, o que era engraçado.
Como foi o dia em que fotografou Lamarca?
A cobertura da matéria pautada era ir até Osasco, no quartel de Quitaúna, fotografar um evento inusitado: o treinamento de tiro ao alvo das caixas do Bradesco para defenderem as agências bancárias de assaltos, que àquela altura começavam a acontecer.
Eu cheguei ao quartel e percorri com os olhos todas as cenas. Havia um grupo de executivos vestindo terno e gravata, entre os quais o presidente Amador Aguiar, cercados pelos anfitriões fardados ostentando muitas estrelas. Mais distante, o grupo de garotas com outros militares sem estrelas. As garotas empunhavam armas mirando num alvo com dois ou três treinadores.
Comecei a fotografar sem entender o porquê daquele monte de gente. Lá pelas tantas me deu vontade de atirar e pedi para o capitão, de nome Carlos Lamarca, que me passou uma arma de calibre baixo. Eu morei muitos anos em fazenda e junto com o meu irmão praticávamos tiro ao alvo com espingarda de chumbo. Assim, eu segurei firme a arma, mirei concentrada e acertei o alvo.
Depois voltei a fotografar e fui para o grupo de homens olhar quem teria de importante. O capitão logo apareceu por lá e se reuniu com o grupo. Ele era um dos melhores atiradores, o que logo soube pelos comentários do grupo. Era uma pessoa respeitada por todos os seus superiores e por isso foi convidado para dar esse treinamento.
O evento continuou, em seguida aconteceria um plantio de árvores pelos convidados. Foi então que Lamarca se aproximou e pediu que eu plantasse uma árvore, em nome da imprensa, para o Exército Brasileiro. Eu recusei imediatamente, agradeci e me afastei, mas ele voltou a me procurar e insistiu. A essas alturas eu já estava com medo de ser presa se recusasse e plantei a árvore.
Quando eu voltei, contei a história para um grupo de amigos que se reunia para discutir estratégias do Movimento Estudantil. Era na casa da minha tia, onde eu morava. Todos me deram a maior bronca por eu ter plantado a tal árvore. Isso foi em dezembro de 1968 e o AI5 foi decretado dias após o treinamento.
Um mês depois o capitão Carlos Lamarca desertou do exército e fugiu com um caminhão lotado de fuzis para iniciar a guerrilha contra a ditadura. Ele tinha 32 anos.
Claro que a minha turma de revolucionários estudantis me pediu para repetir cada palavra que Lamarca falou comigo. E o Exército Brasileiro, a que ele se referiu quando fez o pedido de plantio, era o da Vanguarda Popular Revolucionária – VPR.
Qual a sua sensação de ser reconhecida publicamente como autora das fotos depois de tantos anos?
Eu sempre contei a história dessas fotografias para os amigos e colegas. Ter vivido aqueles momentos foi incrível, mas nunca tive preocupação de divulgar, já me bastava e tinha orgulho de contar.
Até que um dia eu contei no chat do grupo Fotógrafos pela Democracia e muitos se manifestaram sobre assumir publicamente autoria. A partir daí eu consegui algumas fotografias e divulguei. O DCM publicou uma pequena matéria e a Monica Zarattini me convidou para contar no Blog dos Fotógrafos pela Democracia.
Eu acho muito bom e merecido o reconhecimento desse trabalho que foi extensamente publicado na imprensa, em livros e enciclopédias, sempre sem o crédito. Naquela época as publicações não assinavam as fotografias.
Você participou da batalha de Maria Antonia?
Sim, eu estava na guerra da Rua Maria Antônia, quando o CCC (Comando de Caça aos Comunistas) invadiram a USP numa eleição da UEE (União Estadual dos Estudantes).
O pessoal do Mackenzie jogava bombas feitas com bolas de breu incandescentes na direção do prédio da Filosofia. Eu subi até a torre onde ficava a reitoria e pude ver claramente os policiais passando armas para os estudantes. As minhas pernas tremiam só de olhar aquela cena, uma bola de fogo veio na minha direção e estraçalhou os vidros da janela da torre e o fogo começou na sala onde eu estava, corri muito escadas abaixo e saí do prédio, mas na rua a confusão também estava grande.
Fotografei um rapaz baleado sendo carregado por um grupo e mais tarde soube que ele estava morto, era o José Guimarães. A diretora Maria Ester Bueno chamou a Polícia Militar para defender a propriedade privada, ou seja, o Mackenzie. A guerra durou um dia inteiro e destruíram completamente o prédio da tradicional Filosofia da USP, na Rua Maria Antônia, que depois foi transferida para a Cidade Universitária. Uma tristeza.
Eu perdi quase todos os negativos desse dia porque entregava os filmes para o Jornal Última Hora.
Você já foi presa?
Eu só fui presa uma vez numa passeata do Movimento Estudantil, no Largo da Concórdia. Éramos muitos e sentamos na rua gritando o jargão: “Soldado também é povo”. Prenderam todos nós e fomos levados para o DEOPS em ônibus. Liberaram a grande maioria que não eram lideranças.
Eu me lembro que o escritor Márcio Souza foi preso no seu apartamento. Pegaram os livros de Marx, Engels, Mao Tsé-Tung e jogaram na cara dele. Nós sempre ficávamos atentos aos que sumiam, porque muitos sumiam misteriosamente. Foi uma época sombria de trevas e medo. Nem é bom lembrar.
Quais momentos mais te marcaram, enquanto fotógrafa, dos anos de ditadura? Você tem arquivos dessa época?
As fotografias do movimento estudantil marcaram muito forte o meu início como repórter fotográfica. É uma pena que eu não tenha esse material, pois entregava toda a produção para o Jornal Última Hora. Eu consegui recuperar algumas no arquivo da Folha e no Arquivo oficial do Estado, mas poucas.
Eu tinha muito medo de apanhar com os cassetetes enormes, do gás lacrimogêneo e de ser presa. Mas naquela época eu corria muito (risos). A guerra na Maria Antônia foi marcante e até hoje me dá um certo saudosismo da minha coragem. Eu mesma me surpreendo por ter vivido aquilo.
Depois passei por muitos outros momentos importantes na minha profissão que me impactaram bastante, mas foram em circunstâncias pacíficas. Como voar de avião sem porta sobre a Floresta Amazônica, de helicóptero sem porta para fotografar uma Plataforma de Petróleo em alto mar – confesso que senti muito medo. Fotografar o Pedro Collor no dia que denunciou o irmão, logo depois da entrevista ou os caldeirões de gusa incandescentes da CSN .
Você foi por anos Editora de Fotografia da Exame, como sentiu essa dualidade de fotografar o Lamarca e depois acompanhar grandes empresários?
Eu saí da Veja em 1973, grávida e sem nenhum vínculo empregatício. Me mudei para Niterói, onde morava a família do meu marido e onde a minha filha nasceu. Ele que era ator e artista plástico e eu virei marchand dele. Esse foi o período da ditadura mais duro, a Era Médici, onde houve mais tortura. Também foi o período do milagre econômico e construíram muitas pontes e estradas. O dinheiro rolava para os mais ricos e a classe média, mas só as migalhas chegaram aos mais pobres. Muitos aplicavam em obras de arte e conseguimos viver razoavelmente bem com as vendas dos quadros. Eu cheguei a ser a última marchand do Di Cavalcanti.
Me separei depois de 4 anos e voltei para São Paulo para recomeçar a vida, com uma criança pequena. Nesse período eu só tinha uma câmera, uma lente 24mm e uma filha pra criar. Passei nas redações onde eu conhecia alguém, que normalmente já tinha um cargo de editor ou chefe de redação e durante a entrevista com eles eu dizia: “a sua revista precisa abrir mais as fotografias”. Eu dizia isso porque só tinha a grande angular, mas ninguém sabia. No entanto, a ideia de abrir as fotografias e mostrar mais o ambiente fascinava e eu garantia o trabalho. Era uma ginástica conciliar o papel de mãe e pai, com escola, alimentação e trabalhar.
Fotografar empresários nunca tinha sido o meu sonho, mas fui com o propósito de provocar reações em figuras sisudas, apressadas e estressadas. Eu achei divertido fazer aquilo e confesso que me diverti muito em quebrar o gelo e desmontar corpos enrijecidos pelo paletó e gravata. Eu não tinha nenhum preconceito, assim como nunca tive diante de um pobre, para mim somos todos iguais: com insegurança, vaidade, vontade de aparecer bem na fita. Era o meu trabalho, que eu sempre respeitei.
Depois de ter sido editora e fotógrafa da Exame, fui para a Veja como editora, mas a revista que mais gostei de trabalhar foi a Exame, porque além dos personagens eu fotografava os meios de produção do país: agricultura, grandes fábricas, estaleiros, recursos minerais, linha de produção de automóveis, plataformas de petróleo, favelas. Tudo fantástico! Olhar como o nosso país é rico e diversificado, ver as diferenças sociais de perto e sentir que são pessoas com diferentes estilos de vida e oportunidades. Amo a minha profissão e tenho orgulho dela. Eu vi muita coisa.
Sobre o coletivo Fotógrafos pela Democracia, como você começou a fazer parte dele? Qual a importância do coletivo para os dias de hoje?
Quem me apresentou para o grupo foi a grande Rosa Gauditano e eu sou grata. O coletivo Fotógrafos Pela Democracia é importantíssimo para unir todos nessa luta contra os tempos sombrios que vivemos. É um grupo que informa a comunidade de fotógrafos e tem feito um bom trabalho jornalístico com coberturas essenciais para motivar e informar, para seguirmos unidos nesse momento e pensarmos em estratégias de divulgação e movimentos de rua, o que é uma atuação fundamental para nortear a nossa luta.
Além disso, eu tenho visto vários movimentos de solidariedade entre os colegas em dificuldades diversas. Isso é lindo! Eu não tenho dúvidas sobre a grande importância desse coletivo, feito com a participação de grandes profissionais da imprensa e voluntários competentes, tanto na fotografia, edição das publicações e textos.
Publicado originalmente no site dos Fotógrafos pela Democracia no link abaixo
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A Bia trocou o nome da reitora do Mackenzie pelo da tenista Maria Ester Bueno.
A reitora nos anos sessenta era a Esther de Figueiredo Ferraz.
Eu também estava lá. Desde 1965 e em 68 na guerra contra o Mackenzie. Graduei em 1969.
Duas vezes USP: estudava na Maria Antônia e na Dr. Villanova (FEA)
E, evidentemente, era frequentadora do bar do Zé, na esquina.