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Assassinato, Incidente e Tragédia: Enfrentando a Síndrome de Cassandra

Por Walter Falceta

Bom, você já sabe… A bela moça era filha do rei Príamo e de Hécuba. Portanto, irmã de Heitor e Páris, aqueles caras que protagonizaram a Guerra de Troia.

Qual era o dom de Cassandra? A capacidade de prever o futuro. E sua maldição? Ninguém lhe dava crédito e sempre a consideravam louca. Razão? Uma treta mal resolvida com o deus Apolo.

Cassandra avisa, ninguém lhe dá ouvidos e a zica sempre acontece. Aí, já era. E isso se repete, se repete e se repete.

Jornalistas, por ofício e sensibilidade, costumam sofrem desta mesma maldição. E conto aqui, para vocês, três casos, todos eles com testemunhas.

Certa vez, saí de uma reunião privada com o nefando Pimenta Neves. Senti algo estranho. De volta à redação, anunciei para quem quisesse ouvir: “esse cara é completamente maluco e ainda vai acabar matando alguém”.

Deram risada e me constrangi da caçoada. Uns dois anos depois, eu tirava o carro do estacionamento quando tocou o celular. Era uma colega de Estadão.

– Walteeeer, sua profecia se concretizou. O Pimenta Neves matou nossa colega.

Nessas horas, a sensação não é de satisfação, tipo: “tá vendo só?” Não, a sensação é de desespero e impotência. Caraca, será que eu poderia ter feito alguma coisa para evitar a tragédia?

Eu avisei o mesmo sobre o jogador Edmundo. Lá atrás, disse que era um demente, um celerado, e que certamente ia acabar tirando a vida de alguém.

Xinguei-o previamente a todos pulmões, num minuto de silêncio, da grade oeste do antigo estádio do Pacaembu.

Tempos depois, esse descompensado provocou uma incidente de trânsito, com vítima fatal. De novo, aquela sensação horrível de: “será que dava para ter feito alguma coisa?”

Trafegando entre a França e a Itália, você passava por um minhocário de longos túneis no pé dos Alpes.

Aí, atravessava Gênova e, nos trajetos habituais, cruzava a Ponte Polcevera, Autoestrada A10, mais conhecida como Ponte Morandi, em homenagem ao arquiteto que a idealizou.

Ao volante, senti claramente as ondulações na pista, que deveria ser planíssima. Comentei com uma companheira de viagem: “isso parece uma montanha russa light”.

Achei esquisito o sistema estaiado, meio remendado numa das hastes. Falei: “mamma mia, esse negócio um dia vai desabar”.

Isso foi nos anos 1990. Pois bem, em agosto de 2018, num dia de tempestade, aquela obra horrorosa da engenharia desabou.

Destruiu prédios, derrubou galpões industriais e matou centenas de pessoas, inclusive motoristas que guiavam por seu pavimento ondulado e molhado na hora da ocorrência.

Não foi por falta de aviso. Nem seria necessária a intervenção de uma Cassandra. Sabia-se do erro de projeto do viaduto (outra ponte de Morandi já tinha caído na Venezuela), bem como da degradação do aço debaixo dos braços de concreto protendido.

Nada foi devidamente consertado porque era caro. Mas como assim? Porque a ponte tinha sido privatizada, anos antes. Então, para maximizar lucro, davam umas remendadas malemá na ponte e mantinham em funcionamento.

O capitalismo de pilhagem, portanto, foi fundamental para derrubar a instável ponte Morandi, ceifar inúmeras vidas e traumatizar a Itália.

Três anos depois, ou seja, no ano passado, a Autoestrade foi retomada pelo poder público, não antes de render ganhos expressivos para os tubarões que a tornaram uma fábrica de acidentes e mortes.

Aliás, essa tem sido a regra na Europa, com a reestatização de inúmeras empresas estratégicas, na Itália, na França e na Alemanha. Aqui, os sacerdotes do deus mercado seguem na mão contrária, e vão produzindo seus Brumadinhos em sequência.

Ou seja, por vezes, nem é preciso ter as qualidades adivinhatórias da pobre Cassandra. Basta observar a realidade, ouvir a razão e praticar o bom senso.

Arte: “Ajax and Cassandra”, por Joseph Solomon, 1886.

Walter Falceta é jornalista e um dos fundadores do Coletivo Democracia Corintiana (CDC)

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