Por Virgilio Almansur
Naquele lufa-lufa característico de Sampa, me encontro no metrô Brigadeiro em pleno fim de tarde… Um must. E um frio que pedia aconchego… De repente ouço o trinar de uma voz: “… Virgílio! Virgílio!…” e alguém se aproxima desviando-se da massa… Sou levado às paredes e até me sinto protegido e amparado.
— Lembra de mim? Fui sua colega num plantão; naquele que você ensinou “Freud e a sexualidade parcial e total”. Lembra?
(A ficha não caía… Mas me dou conta de que nessa reapresentação tinha bem mais de Freud do que eu poderia supor…).
— Claro!!! Esqueci-me de seu nome. Mas tenho-a na retina…
— Quê bom, Virgílio… Estava saudosa… Nome não é importante…
(Um certo comichão me toma, mas o duplo casaco me protege…).
— Estou começando a me lembrar de você… Foi na implantação de uma enfermaria psiquiátrica naquele Hospital Geral…
— Isso!!! No Jesus…
— Caramba!!! Faz tempo!
— Depois passamos a estudar em casa…
— Ahhh… Claro… Lembro agora até da padoka no café da manhã: Charmosa…
— Mas eu também fazia!
— Sim!!! Geniais! Geniais! Quê pães!!! Você sempre muito charmosa…
— Fiquei impressionada com aquela dica do bico-do-seio, do olhar do neném…
— Do neném? Não conheci…
— Nãããooo!!! Do bebê no aleitamento.
— Ahhh!!! Sim! Na amamentação… Claro… Estou começando a me lembrar…
— Você foi muito importante pra mim… Muito!
— Fico feliz…
— Nunca me esqueço de suas dicas, da passagem da parcialidade à totalidade, da importância que as preliminares têm numa relação…
— Você não se esquece, hein!? A relação mãe-bebê é digna de observação…
— Naturalmente! Quê amplidão você me permitiu conhecer… Partir de um simples bico, que passa na evolução à condição total, nos leva a prazeres indizíveis…
— Aquela aula foi importante, então… Do bebê à mãe, num desenvolvimento fundamental…
— Foi! Foi! Meu marido é que é grato… Creio que soube aplicar…
— Está casada?
— Àquela época estávamos separados. Você também…
— É mesmo!!! Agora começo a me lembrar bastante…
— Ambos ávidos pelas parciais…
— Como assim?
— Pusemos em prática alguns ensinamentos adaptados aos 90’s. Era fim do século…
— Você lembra? Do quê?
— Do fato de você não ser afoito; me favoreceu muito… Valorizei cada centímetro de meu corpo…
— Você quer dizer que sou respeitoso, então!?
— Mais que isso… Você foi fundamental à minha autoestima…
— E você crê mesmo nisso?
— E como… Nunca valorizei tanto meu pé…
— Seu pé???
— É!!! Sempre vi meu pé como uma deformação que Darwin não previu…
— Sério???
— Sim! Uma aberração cromossômica! Um horror!
— Quê isso? Olhe pro seu pé com amor…
— Hoje sim! Hoje olho pra ele apaixonadamente.
— Isso!!! Uma parte do corpo que nos exige muito.
— E quê parte? Aprendi com você… Da parte à totalidade…
— Do halux ao dedinho…
— Ahhh… Halux, o dedão!
— Tá vendo!? Um nome bonito pro dedão do pé: halux!
— Incrível seu culto ao pé… Você dizia ser amante de Cinderela.
— Aqueles pezinhos… Um fetiche!
— Me lembro você dizendo que gostaria de trabalhar numa loja exclusiva de sapatos femininos…
— Creio que eu e a torcida do Flamengo…
— Não sei se toda a torcida lamberia meus pés…
— E eu fiz isso?
— E como? De arrepiar… Um tempão cortejando dedo por dedo e entre os dedos… Ahhh…
— Entre os dedos?
— Ficou tudo molhadinho…
— Caramba! Quê memória!?
— Adoraria repetir a experiência, tanto que me interessei pela anatomia do pé.
— E eu que despertei isso?
— Ôôô!!! Tarso, metatarso, cuneiforme, astrágalo (adoro essa palavra…), cubóide…
— Caramba! Você é instigante!
— Bem… Meu trem já vai…
— Jááá???
— Sim! Tenho que ir. Prazer em revê-lo. Tchauzinho… Me liga!!!
(E foi pegando a escada rolante, quando ainda dirigi algumas palavras…).
— Afinal… Me dá seu nome…
— Afrodite.
Confesso que fui aos meus contatos e digitei a letra “A”… Nenhuma Afrodite.
A caminho de meu trem fiquei imaginando que nos 90’s não tinha tanto celular…
Irei ao caderninho… Dos 60’s…
(— Mesmo longe de você…)
Virgilio Almansur é médico, advogado e escritor.