Construir Resistência
Foto: arquivo pessoal

Aonde foi parar a minha criança interior?

Por Beatriz Herkenhoff

Como estamos cuidando da nossa criança?

Se ela foi maltratada e ferida na infância e não buscamos ajuda, corremos o risco de reproduzir na relação com o mundo, abusos e perversidades que sofremos quando não tínhamos recursos para nos defender.

Ao longo de nossa existência, somos convidados a perdoar nossa criança por gestos e atitudes que nos marcaram. Mas, também perdoar os adultos que nos magoaram.

Experiências de maus tratos na infância (ou atitudes rudes e autoritárias de nossos pais) interferem nas lembranças de momentos alegres e de conquistas. Se ficarmos paralisados na dor, enfraquecemos o poder de luta que há em nós.

Por isso, temos que fazer um esforço para não deixar nossa infância envelhecer com mágoas, descrenças, baixa autoestima, autopiedade e lamentações. Vamos cuidar da criança que ficou perdida no passado para que renasça a criança corajosa, amorosa, rebelde, ousada e potente que mora em nós.

Deixar que essa criança faça parte do nosso cotidiano é uma estratégia para enfrentarmos a solidão, a raiva, o desamparo, o abandono, a ansiedade e a depressão que querem tomar conta do nosso ser em tempos de pandemia. Estudiosos afirmam que quando nos tornamos pais, mães, avós, tios e tias, revivemos nossa própria infância.

Revisitamos nossas experiências positivas e negativas;

Reciclamos o vivido;

Damos novos sentidos para o que não ficou bem resolvido.

Quando o adulto convive com uma criança, tem a oportunidade de resgatar um olhar positivo sobre si, bem como voltar a acreditar na força do amor. Quando meu filho nasceu, a minha criança interior desabrochou com força, por isso tornei-me uma mãe amorosa e criativa.

Sempre amei crianças, sou famosa entre os mais próximos porque tive somente um filho, mas, ia à praia, ao cinema, ao teatro, ao shopping, ao circo, aos clubes, aos parques, a sítios, com pelo menos 10 crianças. E depois que meu filho cresceu e saiu de casa, fui agregando outras crianças para continuar fazendo coisas que renovam a energia de vida.

Não é preciso ser mãe e pai para aprender com as crianças e manter viva a luz da nossa própria criança. Conviver com crianças torna nossa existência mais prazerosa e feliz. Mas, a #pandemia tirou de muitos essa convivência cotidiana.

Tirou as possibilidades de aprendizagem entre as gerações.;

Interações que nos fortalecem para enfrentar as adversidades da vida.

Podemos identificar nossa criança em muitos gestos e ações que fazem a diferença na #pandemia. Nossa criança vibra quando cozinhamos, pintamos, escrevemos, contamos histórias, bordamos, desenhamos, ouvimos uma boa música, dançamos, cantamos, trabalhamos com artesanato, com cultura, reformamos a casa, entre outras atividades que despertam nossa criatividade, imaginação, alegria, fé, compaixão, flexibilidade, solidariedade, afetividade e espontaneidade.

Essas experiências nos libertaram do medo em relação à crítica alheia.

Muitas pessoas estão partilhando suas habilidades com generosidade. Levam alegria para os que estão sós ao cantar e tocar em suas varandas. Sua criança é fortalecida e comanda esses momentos de inspiração.

Tenho uma amiga que cozinha divinamente bem. Todos os dias ela faz um ritual de preparação de pratos maravilhosos mistura cores, cheiros, sabores. Realiza a alquimia dos alimentos e da vida. Após tudo pronto, ela prepara as marmitas e saí pelas ruas distribuindo para as pessoas em situação de rua. É acolhida com um sorriso de gratidão. Conversa e saí dali uma nova pessoa. A criança interior da minha amiga está cada vez mais brilhante.

Jovens estão criando grupos de solidariedade, colocando-se disponíveis para fazer compras em supermercados e farmácias para os idosos. Escrevendo bilhetinhos que alegram e estimulam aqueles que estão sós. Sobem os morros e visitam as pessoas para orientar sobre o uso de máscara e proteção. Distribuem cestas básicas e levam uma palavra que acolhe e inclui.

Pessoas estão fazendo máscaras para doar; sapatinhos, croché e roupinhas para enxoval de bebês. Reencontram sua criança interior em cada gesto que realizam.

Para nos fortalecer e enfrentar tantos desafios e perdas é importante resgatar e impulsionar nossa criança.

Como afirma Paulo Freire em sua obra Pedagogia da Esperança (1992), é preciso ter esperança do verbo esperançar.

Esperança do verbo esperar não é esperança, é espera.

A esperança que temos que manter viva é do verbo levantar, ir atrás, construir, não desistir, juntar-se com o outro para fazer de outro modo (FREIRE, 1992).

A criança, com sua energia, sabe esperançar em abundância!

E vocês? Como estão vivendo a fé e a esperança em dias melhores?

A desigualdade e o aumento da pobreza demandam mudanças estruturais. As lutas contra o preconceito, a violência, por direitos humanos, sociais e políticos são coletivas. O respeito à natureza, ao planeta terra, aos índios, às minorias é um movimento que mobiliza e une povos e nações.

Afirmo isso para dizer que não vou mudar o mundo apenas deixando desabrochar minha criança interior. Mas, se a minha criança perdeu a esperança de viver, ela não irá estimular o meu adulto a acreditar que um mundo melhor é possível.

A potência de vida da criança move um adulto ético e coerente, um adulto pleno de esperança e de luz. Um adulto que acredita na vida e no ser humano.

Finalizando, para ajudar nesse diálogo íntimo, indico alguns filmes que poderão catalisar esse processo individual:

Como estrelas na terra (2007);
Dhanak (2015);
Carta ao Primeiro Ministro (2019);
Uma skatista radical (2021);
Despedida em grande estilo (2017);
Três amigos na estrada (2011);
Gente que vai e volta (2019);
Antes de partir (2007);
Navillera (série coreana, 2021).

Beatriz Herkenhoff é doutora em serviço social pela PUC São Paulo. Professora aposentada da Universidade Federal do Espírito Santo.

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