Por Miriam Waidenfeld Chaves
Alice corria mais do que suas pernas. Pelo menos era o que sua mãe dizia quando a via brincando na frente da casa onde moravam. No queimado e na bandeirinha, não tinha para ninguém. Todo mundo queria fazer parte de seu time. Até os meninos.
Também, levou muito tombo. E nesses momentos, dava razão para a mãe, pois parecia que suas pernas não a acompanhavam. Aí, tropeçava nela mesma e caía. Colocava mertiolate no joelho, ardia, soprava e já estava pronta para outra.
Na escola, era uma aluna média. Detestava matemática. Era da turma da história e geografia. Nessas aulas, só queria saber do rio Nilo e do rio Danúbio. Mas era fã mesmo do mar Negro, pois até onde ela sabia, todo mar só poderia ser azul ou verde. Daí, concluía que esse mar deveria ser mesmo muito diferente.
É que Alice, não sabia bem por que, adorava tudo que era fora do comum. Diferente do que estava acostumada a ver. Quanto mais estranha a coisa, mais ela gostava. Parece que a estranheza das coisas aguçava a sua fantasia, e daí ela perdia horas imaginando como seria essa coisa tão diferente.
Sua mãe às vezes a pegava com o caderno aberto, olhando perdida para o nada. E aí, sorrindo, dizia:
– Termina o dever de casa primeiro, depois sonha, filha.
Alice também tinha verdadeiro fascínio pelo fenômeno das pororocas. Ficava a imaginar o tamanho das ondas, fruto do encontro do rio Amazonas com o oceano Atlântico. E quando D. Neiva descreveu como acontecia a junção dessas águas, ela concluiu que a Natureza era algo muito lindo de esquisito. Mas, por falar no rio Amazonas, Alice tinha predileção mesmo era pelo seu afluente, o rio Trombetas. Achava muito engraçado esse nome. Nome do instrumento musical que André tocava na banda da escola.
Outra coisa que a fascinava eram os faraós. Mas quando soube que seus empregados, escribas e animais eram sacrificados para também serem enterrados junto com eles nas pirâmides, achou os faraós muito maus. Largou-os de lado e passou a admirar Cristovão Colombo, por já naquela época acreditar que a Terra era redonda. Ela, inclusive, adorou saber que foi esse seu herói quem primeiro chegou às Américas navegando pelo Atlântico. A partir daí, ficou obcecada pelas caravelas. Queria porque queria conhecer uma.
Alice também adorava ir à praia. Lá, com as amigas, catava muitos tatuís, que ficavam num balde, coitadinhos, até morrer. Às vezes, o mar amanhecia coalhado de algas transparentes e gelatinosas, que ela sempre tentava pegar com a palma da mão, para em seguida deixá-las escorrer pelos dedos até a água do mar novamente. Achava os tatuís e as algas seres muito esquisitos.
Nos fins de semana, seu programa predileto era quando sua mãe a levava junto com o irmão ao cinema. Adorava assistir Marcelino pão e vinho. Mas ela gostou mesmo foi de Os dez mandamentos. Assistiu duas vezes, só para rever a cena de Moisés abrindo o mar Vermelho. Outro nome estranho para um mar, pensava.
Em casa, ficava radiante quando sua mãe decidia fazer pé-de-moleque. Ao sentir o cheiro do doce na cozinha, largava o dever de casa e saía correndo para assistir a mãe derramar na bancada da pia gelada aquele doce escuro, cor de rapadura, pelando e molengo. Ali ficava até esfriar, quando começava a melhor parte da brincadeira: cortava o doce em losangos e os colocava bem direitinho – um em cima do outro – no prato inglês, todo pintado de moranguinhos.
Alice era feliz, mas tinha um segredo: sonhava em ser anjinho na procissão de Corpus Cristi do colégio. Queria sair pelas ruas do bairro vestida naquela espécie de batina branca cheia de galões dourados nas mangas, com o Sagrado Coração de Jesus bordado no peito. Queria, principalmente, sentir as asinhas nas suas costas se movimentando toda vez que mexesse com os braços.
Via-se como uma personagem de suas histórias fantasmagóricas, andando pela avenida junto com o sacerdote e André com sua túnica vermelha coberta por uma bata de renda branca. Ele, com o turíbulo, espalhando incenso, e ela batendo as asinhas, querendo voar.
Mas Alice não sabia muito bem por que nunca fora escolhida para essa empreitada. Heloisa, Marília e Vera já tinham sido anjinhos. Menos ela. Talvez a professora de catecismo a achasse muito desengonçada e isso, provavelmente, poderia atrapalhar o cortejo.
Depois, quando Alice, aos onze anos, fez sua Primeira Comunhão, teve a certeza de que nunca mais poderia ser um anjinho, pois essa tarefa era apenas reservada para aqueles que ainda não tinham recebido o Corpo de Cristo.
Alice, então, passou o resto desse ano acabrunhada. Triste que nem só. Mas, logo veio o Natal, o Ano Novo e as férias. Até que, em fevereiro, sua mãe lhe perguntou qual seria sua fantasia para o carnaval. Sem hesitar, gritou cheia de certeza:
– Anjinho! E as asinhas têm que se mexer.
Quando o grande dia chegou, Alice se olhou no espelho e achou que aquela era a fantasia mais bonita que já tivera. Muito mais bonita que a fantasia de cigana que havia herdado da prima Anita.
Foi radiante para a matinê no clube. Atravessou o bairro com os pais e o irmão como se estivesse no céu, de tanta alegria. Bateu muito as suas asinhas.
No clube, foi uma sensação. Ninguém até aquele momento tinha tido essa ideia. Porém, depois de uma hora pulando e correndo para lá e para cá, desistiu das asinhas e disse:
– Mãe, segura essas asinhas para mim, porque elas estão me impedindo de correr!
Miriam W. Chaves é contista e professora da UFRJ
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Essa Alice faz a gente reviver muitas das nossas proprias histórias! Uma delicia…
E ainda mostra que só precisávamos mesmo das “asas” da imaginação, porque aquelas de anjinho só serviam de fato pra nos impedir de voar. Adorei!
amei seu comentário, miriam