Ainda sobre a arte ou as artes de se aposentar

Por Beatriz Herkenhoff

com a colaboração de Desirée Cipriano Rabelo

Muitos leitores dialogaram com minha última crônica sobre a arte de se aposentar. Alguns reforçaram a narrativa, como minha amiga Rosini que escreveu:

“Texto maravilhoso! Concordo que a aposentadoria é uma ruptura, das maiores, que temos que fazer (…). Temos que despir de vaidades, do ego inflado que o poder de um cargo importante proporciona! Aposentar significa adquirir uma liberdade inimaginável. Tem que estar disposto a desenvolver uma intimidade com nosso próprio eu, achar que somos nossa melhor companhia (…)”.

Outros identificaram lacunas no texto:

“Você não falou sobre as pessoas que se aposentam e passam a cuidar dos netos ou dos pais idosos”. Ou: “você poderia ter falado daqueles que optam por continuar trabalhando, criam uma empresa, desenvolvem um trabalho de assessoria ou passam a exercer uma nova profissão”. “E nem dos aposentados que decidiram fazer uma experiência no exterior ou voltaram a estudar em universidades.”

Conversei com minha amiga Desirée sobre as escolhas que fiz ao me aposentar. Por que não quis trabalhar como assessora ou em cursos de pós-graduação? Por que não me engajei em grupos de pesquisa na universidade? Por que não me vinculei a uma ONG para realização de um trabalho voluntário?

Como disse, havia optado por ocupar meu tempo de aposentada viajando, namorando, dançando, desfilando em escola de samba, participando de eventos culturais (teatro, cinema, shows), de espaços de vivência da fé. Criando momentos de maior convivência com: crianças queridas, amigos, familiares, filho, nora, sobrinhas e afilhados.

Desirée provocou-me:

“Essa é a sua história – e que só se pode realizar devido à sua personalidade mas, também, porque você tem condições econômicas. Há um mundo de gente que nem sequer pode se aposentar. Ou, ao se aposentar, descobre que precisa continuar trabalhando para que as contas fechem ao final do mês”.

Após longa conversa entre nós duas, decidimos escrever essa crônica, abrindo novos horizontes no processo de aposentadoria. Ou sejam há muitos jeitos de se aposentar. Os matizes variam desde aqueles que saem velejando em cruzeiro pelo mundo, desfrutando dos rendimentos acumulados durante a vida, até os que se resignam a buscar trabalhos em condições precárias para ajudar no sustento da família.

Nesse último caso, as pessoas não têm escolha, optarão por algo que garanta uma renda complementar, sem ter a liberdade de escolher um trabalho com horário mais flexível ou que seja mais prazeroso. Porém, uma coisa é certa: com tantas mudanças em vigor, a noção de aposentadoria aos 60-70 anos também está em plena transformação. Se você tem mais de 50 anos, é funcionário público ou celetista, já deve ter sido afetado pelas mudanças na legislação que jogam a aposentadoria cada vez mais para longe.

A geração anterior à nossa era considerada e sentia-se velha aos 50-60 anos. E a expectativa de vida não ia muito mais além. Porém, como nos mostra o historiador #YuvalNoahHarari (21 Lições para o Século 21), progressivamente a longevidade do ser humano se estende, graças à tecnologia. Ele fala que buscamos a imortalidade!

Assim, uma parte significativa da população (e aqui, outra vez, pesam as condições de vida) chegará aos 80 ou 90 anos em pleno vigor. Nesse sentido, todos serão desafiados a reinventar-se muitas vezes durante sua vida, especialmente quando completar 100 anos for um fato corriqueiro. Isso já acontece.

Lembramos da história de #AnnRusellMiller, a milionário americana falecida recentemente aos 92 anos:

Nascida em 1928, em sua juventude viveu como uma jovem milionária excêntrica. Casou-se e teve 10 filhos. Neste período, além de ser uma excelente mãe, era conhecida por levar seus amigos para esquiar, navegar ou a escavações arqueológicas. Também por ser membro de 22 diretivas de organizações, onde arrecadava dinheiro para universitários talentosos e para as obras da igreja Católica. Ficou viúva em 1984 e cinco anos depois abandonou tudo o que tinha pra unir-se à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora do Monte Carmelo, em Des Plaines. Trata-se de ordem contemplativa: as religiosas nunca saem, só falam o imprescindível, destinando seu tempo à contemplação e à oração. Enfim, foram três vidas distintas em uma!

Como discutido na crônica anterior, a história de Ann nos remete para a importância de estabelecermos diálogos permanentes com nosso próprio eu, tendo em vista a construção de uma aposentadoria que gere plenitude em todas as áreas. Voltando a Yuval Noah Harari, o aumento de nossa expectativa de vida, somado às mudanças que não param de ocorrer devido às novas tecnologias, indica que precisaremos criar novas possibilidades.

Mudar de profissão (porque a que tínhamos deixou de existir, por exemplo). Ou simplesmente porque queremos testar coisas novas. Portanto, aposentar exige um longo processo de preparação afetiva, psíquica e emocional.

É preciso fazer rupturas, identificar nossas necessidades de aprovação a partir do trabalho, reconhecer as vaidades e apegos que nos limitam e impedem de tomar decisões. Dar um salto para um reconhecimento interno, em que criamos condições para recomeçar com novas bases.

Não sabemos o que vai acontecer com as aposentadorias no futuro. De todas as formas e situações, ela é um bom momento para reconstruir novos caminhos. Com toda certeza, nós as autoras deste texto, concordamos com Raul Seixas:

“Eu é que não me sento /No trono de um apartamento/ Com a boca escancarada cheia de dentes / Esperando a morte chegar…”

Nada contra os que querem ou podem sentar-se e apenas esperar a morte. Mas há um mundo aí fora oferecendo oportunidades diferentes…

Para os que tiveram o privilégio de aposentar-se, este é um bom momento para ousar. Pode ser uma ocasião para investir na sua vida pessoal, percorrer as trilhas nunca antes exploradas. Ou então para buscar novos desafios, quem saber retomar antigos sonhos e vocações. Ou até mesmo deliciar-se em cuidar dos netos ou dos pais.

Qualquer que seja a sua escolha, fique atento para não ser dominado pela ditadura do tempo. Que mudanças precisamos fazer para ter uma aposentadoria que gere qualidade de vida para nós, para o outro e para o planeta? Como priorizar nesse contexto, o bem estar físico, a saúde mental e a contribuição para um mundo mais justo?

Não existe uma receita, as escolhas dizem respeito à história de cada um, seu jeito de ser, às condições sociais e econômicas. Mas, nunca abra mão da alegria de viver.

O mais importante, é não renunciar a ser feliz. Pois como ensinava nosso mestre Rubem Alves:

Da alegria não se aposenta…

Beatriz Herkenhoff é doutora em serviço social pela PUC São Paulo. Professora aposentada da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo).

Desirée Cipriano Rabelo é jornalista. Após aposentar-se na UFES (Universidade Federal do Espírito Santo), onde pesquisava e ministrava cursos sobre comunicação e mobilização social, partiu para novos aprendizados. Hoje vive em Barcelona, Espanha.

Resposta de 0

  1. O Ócio Criativo do cientista e sociólogo italiano Domenico De Masi, lançado em 2000, foi uma boa leitura quando me aposentei. Viver comigo tava difícil.

    1. Gratidão pelo seu feedback Galvão. Ainda não li o livro “o ócio criativo”. Mas a partir da sua indicação, li uma sinopse e achei muito interessante. Vou ler o livro. Acredito que enriquecerá muito esse processo de busca por um tempo de qualidade após a aposentadoria.

  2. Beatriz, muito bom este olhar sobre as diversas formas de aposentadoria. As pessoas gostam ou precisam de coisas diferentes. Gostei da sua reflexão!
    Ela me fez pensar: por que ainda não estou aposentada? O que eu poderia estar fazendo?
    Escolhi esperar um pouco para aposentar. Do que preciso me desapegar?
    Espero chegar lá e não me aposentar da alegria! Espero viver sonhos antigos ainda não vividos.
    Obrigada por me fazer refletir!

  3. Zezé, fico feliz por essa crônica que escrevi com a Desirée ter gerado questionamentos no processo de decisão sobre o melhor momento de aposentar

  4. Beatriz, aposentei há pouco e queria tirar um ano sabático mas a pandemia cuidou disto.
    Hoje estou em busca de uma qualidade de tempo pois tenho tempo de “sobra”.
    Buscar novos lugares, novos afazeres que dêem alegria e paz de espírito.
    Abçs

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