Miriam Waidenfeld Chaves
Quando conheci Abil, já tinha mudado de nome. Decidira chamar-se Alberto, mais palatável e fácil de ser assimilado pelas bandas daqui.
Muito moço, mudou seu destino: atravessou o oceano em busca de uma nova vida nas Américas. Intrigada com tamanha peripécia, os meus poucos anos, entretanto, não permitiram que, de imediato, eu compreendesse os motivos desse ato, cujas consequências me pareciam devastadoras: deixar a família e sair mundo afora.
Com o tempo, entendi que fugir da guerra seria um motivo justo.
Hoje já faz mais de 100 anos dessa história, que insistentemente eu pedia para ser recontada, quando durante as férias me encontrava na casa de meu avô Alberto, em Minas Gerais, terra que escolhera arribar ainda muito jovem e solteiro.
Descobri que Abil havia nascido em Rosh Pinna – Alta Galileia -, região onde os primeiros judeus oriundos da Romênia e da Rússia se estabeleceram por volta de 1882, com o intuito de construírem o Estado de Israel.
Abil crescera entre as batatas plantadas pela mãe, Léa, e os estudos junto com o pai, Marduché. Cercado por uma floresta de cedros, corria desesperado atrás de passarinhos, junto com Samir, seu melhor amigo muçulmano.
A falta de mais ingredientes para essa parte da história que mais me parecia uma fábula de Hans Christian Andersen, deixou-me inconsolável nos meus 13 anos. Intuí que o fio dessa meada era tão turvo quanto uma tempestade de areia no deserto de Neguev: cegava os olhos e apagava os rastros de uma história não contada.
Afeiçoada a fantasias, mais tarde acabei acreditando que entre o reino encantado dos campos de cedro da Galileia e a terra brasilis, onde Abil desembarcara ao alvorecer do século XX, haveria um mar de mistérios e recordações não reveladas.
***
Já do outro lado do planeta, Abil abruptamente resolve mais uma vez mudar seu destino: em vez de aportar em Buenos Aires, destino final de sua viagem no Vapor Vitória e onde amigos o esperavam, resolve descer no Porto de Santos.
Dizia-me estar cansado do alto mar e ansiar por terra firme. E eu, estupefata com suas explicações, me dei conta que o acaso definiu minha existência.
Primeiro, alojou-se no Rio de Janeiro, onde percorreu suas ruas vendendo panelas. Depois, circulou pelas Minas Gerais como caixeiro viajante, até arribar em Estrela, cidadezinha do alto da Serra da Mantiqueira.
Ali fincou raízes. Conheceu minha avó Alzira, casou-se e teve três filhas: Raquel, Ruth, minha mãe, e Diana, cujos nomes homenageiam a cultura que abandonara.
Com o tempo, tornou-se um próspero comerciante. Sua loja, Fornecedora, como o próprio nome diz, à época fornecia material de construção para todas as cidades da região. Seu orgulho!
Com 75 anos, faleceu na cidade que adotara para si, em Minas Gerais. E dali só saíra para desfrutar das águas do mar no Saco de São Francisco, bairro aprazível de Niterói, onde sua filha Ruth morava. Lembro-me até hoje de seu calção de banho marrom!
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Pouco soube de Abil. Conheci apenas Alberto. Mas quando meu avô dizia que Edward G. Robinson, famoso ator de cinema dos anos 1940, era seu primo que imigrara para os Estados Unidos, sabia que era Abil se revelando para mim.
O rádio à válvula onde escutava notícias em línguas incompreensíveis e a fotografia do avô rabino pendurada na parede de sua sala de visitas também se transformaram em pequenos indícios a respeito da história desse jovem viajante.
Entretanto, ao receber de minha mãe uma caixa de sapatos com perfume amadeirado, o mar de mistérios que pairava sobre a vida de meu avô Alberto é desfeito. Ali encontrei um quipá, cartas, fotografias, pequeninos objetos e algumas folhas secas de cedro.
Emerge dessa relíquia uma história de amor impossível, vivida às escondidas por entre a floresta de cedro que definia a fronteira entre as casas de Abil e Aysha, irmã de Samir.
Finalmente, pude entender que a disputa por território entre muçulmanos e judeus sionistas, em pleno Império Turco Otomano, fora a guerra da qual Abil sempre desejou fugir.
Não procurou escapar dos prenúncios da Primeira Grande Guerra, como sempre supus. No íntimo, fora o desfecho de sua história de amor a razão de sua partida: a família de Aysha e Samir deixa Rosh Pinna e retoma sua tradição nômade ao se juntar à tribo beduína El-Zangariya no deserto sírio.
Sem condições para iniciar uma batalha inglória, o jovem amante resolveu imigrar para o Novo Continente em busca de uma nova história.
***
Hoje, em meu apartamento, o rádio, a fotografia de meu tataravô e as fotos de Abil na floresta de cedro com Aysha e nas escadas do vapor Vitória embalam a minha vida e me conectam com Abil, meu avô Alberto, tão querido.
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Miriam, adorei o texto.
Como é bom poder resgatar a história da família e registrá-la para a eternidade!
Quisera eu poder fazer o mesmo, mas infelizmente meus avós já se perderam no tempo e mais distantes ainda estão as memorias dos meus bisavós.
Parabéns!
Excelente o texto de Miriam. Mexer com memórias é sempre emocionante. Obrigada por seguir o Construir Resistência.
Obrigada vc, por me dar a oportunidade de trazer para o mundo o que vai dentro de mim. bjs, miriam
Obrigada, querida amiga
Tocante o texto!
Silvia, nas nossas memórias, a nossa identidade.
obrigada. a vida tem essa maravilha que se chama memória! bjs, miriam