A Questão democrática e o golpe de 64: os militares e a política (1)

Marly Motta

Marly Motta

 

Relembrar o golpe de 1964 traz à baila o debate sobre o caráter da democracia brasileira. “Jovem”, “planta frágil, de difícil adaptação ao solo do país”, são algumas das expressões utilizadas para qualificar as experiências democráticas do passado e, sobretudo, as do presente. Mais do que em qualquer outro aniversário do “golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil”,(2) este de 2021 levantou polêmicas acirradas sobre a resiliência – para usar uma palavra da moda – do regime democrático em nosso país. Sem endossar a tese de que a historia é a mestra da vida, ou seja, de que o aprendizado do passado evita erros futuros, creio ser útil uma visita à chamada “experiência democrática” durante o governo João Goulart (set.1961-mar.64), com o objetivo de entender como a questão da democracia enfrentada naquele período teve um papel crucial na maneira como se desenrolou o golpe que encerrou o regime democrático e instituiu a ditadura, por mais de duas décadas, no país.

Espremida entre duas experiências autoritárias – o Estado Novo (1937-45) e a ditadura civil-militar (1964-85) –, a vivência democrática experimentada a partir de quatro sucessivas eleições presidenciais – 1945, 1950, 1955 e 1960 – foi chamada de “República populista”. Segundo essa interpretação, o “golpe militar” teria resultado do fracasso dos “líderes populistas”, em especial João Goulart, de conduzir a bom termo a participação das massas populares no processo político. Por isso, tais lideranças teriam sido as maiores “responsáveis” pela incapacidade da sociedade brasileira de resistir ao golpe de Estado e se tornar uma “verdadeira democracia”.

Em função de uma produção historiográfica expressiva, foi reconhecido, no entanto, o valor dessa experiência, corporificada na regularidade do processo eleitoral, na livre atuação de partidos políticos e, sobretudo, no reconhecimento do povo como um ator político a ser conquistado e incorporado ao regime democrático representativo, o que levou muitos políticos, pouco calejados no trato com as camadas populares, a rever suas estratégias de aproximação com um eleitorado mais amplo, o que requereu um aprendizado nada desprezível.

No entanto, o fato de ser reconhecido o estatuto democrático para o período em tela, não nos exime de enfrentar perguntas, as quais, no fundo, visam a responder, enfim, que democracia era aquela. E também – por que não? – que democracia é a nossa agora. Que limites e possibilidades eram/são postos aos atores políticos, especialmente aos militares? Como se relacionavam/am os três poderes? Como funcionavam/am os partidos políticos? Qual o papel do presidente Goulart/presidente Bolsonaro como líder e/ou mediador dos conflitos em jogo? Que apostas eram/são feitas na manutenção do regime democrático ou na sua derrubada?

Tal como hoje, alguns atores dividiam o palco e disputavam a primazia de suas falas. Para ficar no calor da atual conjuntura, iremos analisar a filiação de militares – oficiais e subalternos – aos partidos, trazendo para dentro da caserna as disputas políticas, vale dizer, ideológicas e partidárias. Por isso mesmo, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e a União Democrática Nacional (UDN), representantes de correntes opostas do espectro político-partidário, foram os partidos que mais receberam filiações de militares e que, por isso mesmo, sofreram o impacto dessas disputas. Como diz a cientista política Maria Celina D’Araujo, “a capacidade que o PTB teve de influenciar setores militares ou de interagir com eles foi, certamente, um dos principais fatores para a eclosão do golpe.”

A estratégia de expansão das bases político-eleitorais do PTB teve como alvo os setores nacionalistas e reformistas das Forças Armadas. A pregação petebista atingiu especialmente os sargentos – o “povo em armas”, como se definiam –, que não hesitavam em se declarar “janguistas” e “brizolistas” e que, em função da ambiguidade da Constituição, acabaram concorrendo, em 1962, para cargos eletivos no Executivo municipal e no Legislativo. No estado da Guanabara, o sargento Antonio Garcia Filho foi o segundo mais votado da bancada federal eleita pela Aliança Socialista Trabalhista (PTB/PST), só perdendo para Leonel Brizola, que chegou a conquistar quase 270 mil votos em um eleitorado de um milhão de eleitores. Apesar da manifestação do STF contrária à elegibilidade dos sargentos, a reação de desobediência à posição do Supremo geraria uma grave crise político-militar com repercussão negativa na construção da democracia no Brasil.

Nas mesmas eleições de 1962, só que do lado da UDN, o general Danilo Nunes foi o recordista de votos para a Assembléia Legislativa da Guanabara. Os mais de 50 mil votos que recebeu representavam uma parte do eleitorado carioca que apoiava sua postura conservadora, profundamente pautada por um feroz anticomunismo. Essa posição radical o conduziria à eleição para o governo estadual em 1965, como candidato a vice-governador na chapa do udenista Flexa Ribeiro, derrotado nas urnas por Negrão de Lima, da aliança PTB/PSD.

É fácil observar que estas posições radicais de certos setores militares foram trazidas para dentro de partidos políticos como PTB e UDN, esvaziando, como ficou demonstrado pelos resultados eleitorais de 1962, o tradicional partido do centro, o Partido Social Democrático (PSD). Ou seja, “as direitas, como as esquerdas, estavam dispostas a recorrer aos militares para alcançar seus projetos de poder”. E completamos: esse recurso aos militares visava tanto à política de partidos, votos e eleições, quanto às iniciativas no campo revolucionário/golpista, de acordo com a linguagem da época. Como concluiu Elio Gaspari, “Jango foi deposto pela carta golpista que estava nas mãos de vários jogadores, mas a direita fez a canastra.”

Deve-se lembrar que nem todos os jogadores dispunham da “carta golpista”. É o caso, por exemplo, do ex-presidente Juscelino Kubitschek (1956-61), para quem a radicalização trazia a necessidade de fortalecer o “centro” e torná-lo viável eleitoralmente. Já o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, podia acender uma vela a Deus – disputa eleitoral –, e outra ao diabo, a deposição do presidente com o apoio militar. Por isso mesmo, as apostas no processo eleitoral, às vésperas do golpe de 31 de março, demonstram que a saída dentro das regras do jogo democrático-eleitoral ainda constava do leque de opções de alguns dos principais atores políticos daquele momento. No entanto, em um ambiente de grande incerteza, a visão de longo prazo se torna refém do imediatismo. Sabemos o epílogo desse filme, e nele a democracia foi a maior vítima.

Em suas cenas finais, é possível notar que, no movimento golpista, houve uma ativa participação de líderes civis de oposição ao governo, dentre os quais se destacaram os governadores dos estados mais fortes da federação: São Paulo (Ademar de Barros); Minas Gerais (Magalhães Pinto) e Guanabara (Carlos Lacerda). Foi, portanto, um golpe civil e militar. Se as feições peculiares da democracia então vigente tiveram um papel crucial na vitória do golpe que encerrou o regime democrático no país, é verdade também que influenciaram na definição dos caminhos por onde trilharia a ditadura por mais de duas décadas. Resta a questão: até que ponto a democracia atual ainda está alinhada por estes trilhos?

 

Notas da autora

(1) Este texto foi extraído do artigo “Os anos Jango e a questão democrática”, publicado na revista Interseções, [Rio de Janeiro], v. 16, n.1, p. 15-30, Jun. 2014.

(2) FERREIRA, Jorge; GOMES, Angela de Castro. 1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2014.

 

Marly Motta é historiadora; professora aposentada da FGV-RJ.

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