Construir Resistência

A quem interessa o controle da memória?

Por Sonia Castro Lopes

A imprensa tem noticiado tentativas e até mesmo a demolição de estátuas de defensores da escravidão, líderes de governos autoritários e vultos da história nacional por militantes tidos como “radicais”. Por outro lado, tais monumentos vêm sendo zelosamente preservados por guardiões, em geral pertencentes aos quadros da extrema direita. Politizou-se a discussão em torno de um tema que, sem dúvida, instiga o debate.

Em junho do ano passado, em Bristol, manifestantes antirracistas derrubaram a estátua de Edward Colston, lendário traficante de escravos do século XVII. Poucos dias depois, foi retirado do catálogo da HBO Max o filme “E o vento levou…” sob a justificativa de que a película retrata a vida dos escravos durante a Guerra de Secessão nos EUA de forma romantizada. A reação a esses episódios veio sob forma de protesto por parte de um senador republicano, apoiador do ex-presidente Donald Trump, em artigo publicado no New York Times no qual ele sugere o uso da força militar para conter tais manifestações. Criticado por diversos jornalistas, obteve a complacência de outros em nome da “liberdade de expressão.” Em seguida, um grupo de manifestantes de extrema direita reuniu-se em torno da estátua de Winston Churchill, em Londres, para protegê-la dos “vândalos”, uma vez que aquele estadista vem sendo acusado de posições racistas.

Com algum atraso o movimento chegou até nós. No último sábado (24) a estátua do bandeirante Borba Gato edificada em Santo Amaro, zona sul da capital paulista, foi incendiada. Na verdade, a escultura já vinha sendo alvo de críticas por parte de grupos que defendem a destruição de monumentos que exaltam a escravização de povos. Um grupo denominado Revolução Periférica assumiu a autoria, mas há quem aposte em elementos de direita infiltrados que desejavam desviar o foco das atenções para empanar o brilho do movimento 24 J que movimentou a Avenida Paulista na tarde de ontem, assim como em diversas cidades do país.

Como historiadora e professora, acho possível avançar nessa lógica dicotômica ao tentar responder a seguinte  questão: Quem e como se narra a História? Sabemos que a história é construída, interpretada, com base em documentos. Sabemos também que ela é sempre dinâmica, tecida no diálogo entre o campo empírico e o arcabouço teórico que serve de modelo ao historiador. É essa concepção dialética que move a história, é nesse espaço de possibilidades que se opera o fazer histórico, conforme observa Michel De Certeau em A Escrita da História (1982).

Isso posto, argumento com Jacques Le Goff em seu clássico História e Memória (1996), que monumentos são documentos, materiais datados e necessários à compreensão do passado. Não há hoje distinção hierárquica entre documentos escritos ou imagéticos; portanto, derrubar monumentos equivaleria incendiar um acervo escrito ou sob qualquer outro suporte, como filmes, vídeos, telas ou fotografias.  Nesse sentido, os episódios recentes nos obrigam a refletir como as imagens e as falas produzidas a partir do registro da destruição desses monumentos também se configuram como novos documentos que merecem ser preservados com o propósito de ajudar a desenrolar o fio da história, demonstrando como o tempo é capaz de alterar nossa percepção sobre fatos e personagens. Documentos são reveladores de uma época e como tais devem ser compreendidos, o que não significa que não tenhamos que cotejar, problematizar e criticar essa matéria prima de que é feita a História.

Por isso, ao invés de destruir, parece-me mais lógico e necessário denunciar ideias e interesses que se erguem por trás dos documentos/monumentos, desvendar as intenções de seus criadores, desnaturalizar o que parece ser óbvio, desconstruir narrativas a respeito deste ou daquele fato e/ou personagem. Portanto, destruir me parece recusar a historicidade ali contida.

É preciso que historiadores e, especialmente, professores exerçam sua função pedagógica orientando alunos e interlocutores a “escovar a história a contrapelo”, como sugere Walter Benjamin. Por que, por exemplo, não proporcionar aulas práticas em logradouros onde foram erigidas determinadas estátuas? E no local, além de apresentar o personagem, problematizar sua relevância histórica e conjecturar o porquê daquele monumento ter sido colocado naquele espaço e naquele tempo. Por que não colocar junto aos monumentos placas explicando quem foi, a quem serviu e sob que contexto foi ‘homenageado.’ Por que não se pensar em um museu onde esses monumentos pudessem ser vistos e analisadas a partir de uma perspectiva crítica? Assim, procede-se a uma verdadeira operação historiográfica, levando os jovens a refletirem sobre a existência de narrativas hegemônicas, além de perceberem outras possíveis interpretações da história.

Dou um exemplo. No Rio de Janeiro, a estátua equestre de Dom Pedro I foi inaugurada, em 1862, na Praça da Constituição, cujo nome foi mudado pelos republicanos, em 1890, para Praça Tiradentes. Fica a pergunta: o que dizer de uma imagem eternizada em bronze de um herói do império – cuja avó (D. Maria I), responsável pela sentença de morte do alferes-, situar-se no local que serviu de cenário à execução daquele que, por uma construção republicana, recebeu o título de “mártir da independência”? Quero dizer com isso que a memória é sempre seletiva, irremediavelmente controlada pelos agentes do poder num determinado tempo-espaço.  Erigir ou destruir monumentos são movimentos análogos, apenas com sinais trocados.

 

Crédito da foto: Gabriel Schlickmann/Ishoot/Estadão

 

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