Construir Resistência
Marly Motta

A Política do Rio na segundona

Por Marly da Silva Motta *

 

Embora já se tenha passado muito tempo, ainda hoje me recordo de minha avó dizendo com orgulho que em nossa família não havia “flamenguistas”, nem “lacerdistas”. Parte da família era vascaína; parte, botafoguense. E todos eram ardentes críticos de Carlos Lacerda, jornalista e parlamentar da cidade do Rio de Janeiro (então capital do país), figura de proa da direita conservadora, e considerado um dos vértices da política nacional. Para muitos, como a minha família, Lacerda teria sido o principal responsável pela morte do presidente Getulio Vargas, cujo suicídio, em 24 de agosto de 1954, se devera à pressão política exercida pelo jornalista e seus “asseclas” contra o “pai dos pobres”.

 

Minha querida vó Zezé já se foi há muito tempo, mas certamente ela gostaria de entender o que aconteceu. Por que Vasco e Botafogo, que disputavam os campeonatos em pé de igualdade com seus rivais, Flamengo e Fluminense, sumiram, mais uma vez, do quadro de honra do futebol brasileiro? E mais: o que foi feito do Rio de Janeiro, a celebrada “caixa de ressonância do país”, palco dos acesos debates entre lacerdistas, varguistas e brizolistas?   Será que, tal qual a dupla preto-e-branca, a cidade também caiu na “segundona?” Traduzindo o jargão futebolístico, a questão a ser colocada é se a política e os políticos do Rio teriam perdido o lugar de protagonistas no cenário nacional.

 

Pode-se destacar uma série de eventos que sinalizaram a progressiva perda deste protagonismo. São marcos específicos da história da antiga capital imperial e republicana: 1) a mudança da capital em 1960 e a transformação do Rio em estado da Guanabara; 2) a política deliberada da ditadura militar, a partir de 1970, de transferir para Brasília os símbolos mais evidentes da capitalidade ainda associados ao antigo Distrito Federal; 3) e, por fim, a fusão da Guanabara com o Estado do Rio, em 1975. Gostaria de ressaltar, no entanto, conjunturas e figuras que apostaram o sucesso de suas carreiras na volta da centralidade do Rio de Janeiro no panorama político nacional.

 

Uma dessas figuras foi Leonel Brizola. Contrariando as previsões dos institutos de pesquisa, o político gaúcho, cassado em 1964 e anistiado em 1979, venceu a eleição de 1982 para o governo do novo estado do Rio de Janeiro. Governador do Rio Grande do Sul (1959-63), Brizola era um dos expoentes da chamada esquerda nacionalista do PTB. Teve uma breve passagem na política da Guanabara, quando resolveu disputar uma cadeira de deputado federal nas eleições de outubro de 1962, com o claro intuito de medir forças com Carlos Lacerda, então governador do estado, onde renascia com vigor o tradicional embate entre a UDN de Lacerda, e o PTB de Brizola, que se considerava o verdadeiro herdeiro de Vargas. A Guanabara acabou se tornando, assim, o palco privilegiado onde os dois atores, diferenças ideológicas à parte, afinavam suas falas no diapasão de uma mesma concepção da política como o palco dos grandes debates e dos grandes temas, onde pontuavam a figura do ator político e da opinião pública em um clima de tensão e crise. Concebendo a política como uma guerra, supervalorizando o domínio da linguagem e da retórica, personalizando e nacionalizando a disputa, tanto Brizola quanto Lacerda conseguiram encarnar uma das faces da política carioca, aquela que identificava o Rio de Janeiro como a “caixa de ressonância do país”, a eterna “belacap.” Nesse embate, Brizola levou a melhor, uma vez que, montado em quase 270.000 votos (27% do eleitorado), tornou-se o deputado mais votado do país. Seu curto mandato se encerrou com a cassação em 1964. Voltou ao país com a anistia, e foi eleito para o governo do estado do Rio de Janeiro.

 

Essa eleição, é bom ressaltar, foi sustentada pelos números arrasadores da vitória de Brizola na cidade do Rio de Janeiro – 42% contra os 27% do segundo colocado, Moreira Franco. O que nos faz refletir sobre a identificação de sua figura com elementos da cultura política carioca, que localiza em tempos passados a idade de ouro da cidade. Saudades dos tempos de capital federal, saudades da Guanabara, quando o Rio era o centro nervoso do país, seu tambor, sua caixa de ressonância, e quando seus políticos possuíam dimensão nacional. A estratégia da campanha brizolista funcionou, e acionou na memória coletiva a lembrança dos tempos áureos da cidade, quando era o principal teatro do poder.

 

Nas décadas seguintes, outras lideranças políticas, como Cesar Maia e Sergio Cabral, tentaram construir uma sintonia fina entre as respectivas carreiras e a projeção da cidade no cenário político nacional. Falaremos dessas tentativas em outro texto. Por ora, pode-se adiantar que a eleição e a administração de Marcelo Crivella (2016-20) foram balizas do caminho que levou a capital fluminense para a segunda divisão no ranking das capitais nacionais. Como botafoguense e carioca, espero que ambos, Botafogo e Rio de Janeiro, saiam logo dessa incômoda “segundona.”

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*Marly Motta é historiadora; professora aposentada da FGV-RJ.

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