Construir Resistência
Foto: arquivo pessoal

A loucura que habita em nós

Por Beatriz Herkenhoff

A convivência com a “loucura” e com a pobreza permitiram que eu dialogasse permanentemente com a loucura e as fragilidades que habitam em mim. E contribuíram para que eu não depositasse no outro, as sombras, limitações e vulnerabilidades que são minhas.

Passei minha infância e adolescência circulando livremente pelas ruas de #CachoeirodeItapemirim (ES), minha cidade natal. Como éramos de família numerosa, brincávamos com os primos de casa em casa, mas o ponto de encontro principal era a escola #TécnicadeComércio, pertencente à minha família: espaço de estudo e de formação para muitos cachoeirenses.

Para nós, crianças, era também o lugar do afeto, do encontro com amigos e primos, da alegria, das gargalhadas, das brincadeiras criativas. Minha infância foi marcada por aqueles que eram considerados “os loucos” de Cachoeiro e que faziam parte do nosso cotidiano: nenê doido; Maria Fumaça; Taruíra entre outros.

Tínhamos com eles uma relação de atração, respeito, medo, mistério e vontade de desvendar suas histórias. Foram tão marcantes que, como assistente social, fui trabalhar no #HospitalPsiquiátricoAdautoBotelho. Eu amava aquele, espaço! Amava cada um que era considerado “louco”. Acredito que como equipe (médicos, assistentes sociais e psicólogos) fizemos a diferença na vida daquelas pessoas.

Naquele período compreendi que a loucura não era individual, mas familiar, coletiva e, infelizmente, também institucional. A internação hospitalar agravava a loucura de muitos que por ali passavam.

Essas lembranças vieram à tona porque na #PraiadoCanto (Vitória, ES) vive um senhor que habita em nossas ruas há anos. Acompanhei ano a ano o seu processo de adoecimento mental. Ele não faz mal a ninguém, às vezes fica bravo e xinga.

Tenho com ele uma relação de respeito, de misericórdia, de sensibilidade pelo seu abandono, de atração e ao mesmo tempo de medo. Há alguns anos ele andou tossindo muito à noite. Sua tosse interrompia meu sono e tocava meu coração.

Gostaria de aproximar-me, saber sua história e conhecer seu lado engraçado. As zeladoras dos prédios conversam com ele enquanto varrem as calçadas. Brincam que vão cortar seus cabelos (rastafári). Ele ele reage dizendo: “não, meus cabelos são a minha força”. Elas retrucam: “então você é o sansão”.

Na ocasião de sua tosse, ao fazer contato com os responsáveis da Prefeitura pelas pessoas em situação de rua, descobri que ele tem um transtorno mental e por isso não aceita ajuda, nem toma os medicamentos adequados. Por isso fica tão difícil a abordagem.

Em tempos de #pandemia, a situação das pessoas em situação de rua se agravou e multiplicou. Para ajudá-los temos que recorrer aos órgãos públicos, exigir que realizem um trabalho eficaz e eficiente.

Mas, ao mesmo tempo, não podemos ficar indiferentes. A pobreza, a fome e a loucura batem à nossa porta, entram em nossa casa. Somos convidados a exercer a compaixão, a caridade e a solidariedade.

Um grande amigo da #CVRD, ao ler minha crônica sobre Maria Grampinho/Cora Coralina (publicada no ConstruirResistência) mandou-me a seguinte mensagem:

“Há três anos eu vivi o meu melhor Natal de todos os tempos. Combinei com a esposa e convidamos algumas pessoas de rua para almoçarem conosco. Pessoas que perderam toda referência de família. Fizemos um almoço como faríamos para a família. E eles vieram. Ouvi histórias comoventes, pessoas diziam que há vários anos não sabiam o que era um Natal.”

Fiquei muito emocionada com a partilha desse amigo. Ele saiu do comodismo, do isolamento familiar. Colocou-se no lugar do outro e mergulhou na história de cada um. Ninguém continuou sendo o mesmo após essa experiência. Quando os convidados foram embora, o filho perguntou:

“Pai, você tinha ideia do bem que faria para eles?

E ele respondeu:

“Tinha sim, só não imaginava o bem que eles fariam para mim.”

Acredito que a nossa indiferença em relação aos pobres e à pobreza, em muitos casos, é um mecanismo de proteção para não enxergarmos nossas próprias contradições e misérias. A dor do outro me transporta para minha própria dor, abre feridas guardadas e aponta para necessidades de mudança. Portanto, é melhor mantê-los distantes.

Ao longo de minha existência, a convivência com a “loucura” e com a pobreza permitiram que eu dialogasse permanentemente com a loucura e as fragilidades que habitam em mim. E contribuíram para que eu não depositasse no outro, as sombras, limitações e vulnerabilidades que são minhas. Foram conquistas interiores que se devem também ao fato d’eu ter feito terapia em vários momentos de minha vida (1985-87; 2008-2016; e a partir de 2020).

O #isolamentosocial imposto pela #pandemia está adoecendo a todos. Precisamos, mais do que nunca, buscar ajuda profissional. Em tempos difíceis, muitos psicólogos e psiquiatras estão realizando atendimentos gratuitos. Os sentimentos de medo, impotência, tristeza, ansiedade, depressão, de falta de perspectiva nos adoecem física, psíquica e emocionalmente.

As pessoas em situação de rua estão caminhando em busca de um abrigo, de uma pausa, de um olhar, de um almoço, de uma conversa amiga que reconhece a sua importância e humanidade. Desejo que a indiferença não tome conta do nosso cotidiano, que possamos estar abertos para acolher aqueles que nos falam através de sua pobreza, abandono e suposta loucura.

E que eu possa me perguntar: Que insanidades habitam em mim? Porque aceitamos ser depositários da loucura do outro? Por que depositamos nossa loucura no outro?

Em que nos transformamos com tanta raiva e agressividade contida? Por que somos portadores de tantos gestos de destruição, de negação, de indiferença e de omissão?

Desejo que a cura da humanidade aconteça através de mudanças concretas junto àqueles que nada têm. Mas principalmente pela conquista de uma sociedade mais justa e igualitária.

Colocar-me a serviço dos que nada têm é um caminho para eu superar o sentimento de autopiedade em que afirmo que: “tudo de ruim acontece comigo”, “ninguém vive dor maior do que a minha.” Construir movimentos que geram esperança, ajuda a sair de mim e elaborar o luto por perdas tão pesadas, como as que estamos vivendo,

Na ultima crônica ao escrever sobre a arte cinematrográfica, disse que indicaria alguns filmes. Hoje vou sugerir filmes que nos ajudam a dialogar com a temática da loucura, da transgressão e de conflitos familiares, como:

Loucas de Alegria (2016);

Mucize (2015);

Nise, o coração da loucura (2015);

Ninguém sabe que estou aqui (2020);

Não estou louca (2018);

O milagre da cela sete (2020);

A Senhora da Van (2015);

Dezessete (2019).

#Cuidardosoutrostambémébom

#Bomfilme
Beatriz Herkenhoff é doutora em serviço social pela PUC São Paulo. Professora aposentada da Universidade Federal do Espírito Santo.

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