Por Walter Falceta
Ora, era para estarmos festejando as façanhas incríveis da Geração Z, ou seja, daqueles nascidos de meados da década de 1990 até o início da década de 2010. Mas não… Estamos aturdidos e sem saber como estabelecer comunicação com vastos setores da nova juventude.
Os baby boomers terminaram de construir a estrutura pesada do mundo ocidental tal qual o conhecemos. É a turma do satélite. A Geração X preencheu o mundo tangível com uma nova semiosfera, com games, gadgets eletrônicos, teias digitais, aplicativos e redes sociais.
E a Geração Z, essa dos nativos digitais, tornou-se o resultado complicado, enigmático e estranho dessa troca da materialidade pela virtualidade.
Do ponto de vista da esquerda, crescemos sobre a plataforma do materialismo dialético, ou seja, crentes em um método científico que estuda a modelagem constituída pelos objetos, pelo ambiente, pelo corpo e pelo coletivo de pessoas. Reverenciamos o constructo do tangível.
A nova geração, no entanto, perdeu boa parte do contato possível com o mundo palpável e com o jogo intricado das relações humanas. A vida vivida foi (e está sendo), em boa parte, substituída pela vida emulada, encenada e inventada nas diversas dimensões da realidade virtual.
O smartphone se converteu no grande oráculo de centenas de milhões de jovens. É ali que aprendem. É ali que se comunicam. É ali que se estabelecem enquanto cidadãos políticos.
É evidente que o sistema – o arranha-céu do status quo, a fortaleza do establishment – estabeleceu fontes massivas de divulgação dirigida de informações, uma central de entertainment de exaltação do neoliberalismo e uma agenda política esperta a serviço do interesse das grandes corporações. A doxa da infâmia é: tudo caminha inevitavelmente para a privatização e ninguém pode deter este processo.
Nessa agenda, estão inseridas também todas as boas coisas e causas, como o feminismo, o combate ao racismo e o enfrentamento das diversas formas de homofobia. São os bombons que o Partido Democrata coloca nas caixas de granadas que distribui pelo mundo.
Ao mesmo tempo, no entanto, todas essas valiosas e necessárias lutas estão estrategicamente desvinculadas da pugna maior, ou seja, aquela contra os privilégios de classe, pela igualdade e universalização de direitos e pela construção de uma ordem social realmente fraterna e solidária.
Temos, pois, os móbiles apropriados, sob um guarda chuva furado e de hastes rompidas.
O resultado é um profundo mal-estar divisionista nos redutos progressistas, com embates pesados que se ancoram, sobretudo, na singularidade identitária. Seria necessário, por exemplo, que Alexandra Kollontai e Clara Zetkin, campeãs do feminismo, fossem revisitadas.
Segundo elas, somente é possível construir uma sociedade de iguais, sem opressão dos homens sobre as mulheres, em um cenário de profunda e radical transformação de todas as relações econômicas e sociais.
Quando o aspiracional da rebeldia está encapsulado na causa própria, o que ocorre internamente é patrulha, censura, autoritarismo e focos espalhados de micro-tirania. Consequentemente, atrasa-se a própria pauta identitária porque, isolada, não ganha a adesão dos demais progressistas.
É evidente que essa fragmentação no campo da esquerda é comemorada pelos controladores do cérebro panóptico da web, os mestres da guerra híbrida. Há um incentivo permanente à prática do ageísmo, ou seja, da repulsa à senioridade, realizada em forma de bullying permanente. Se é analógico, é ruim. Se é digital, é novo, portanto, bom e necessário.
A outra tática é insuflar nestes estratos jovens a fúria radical, a exigência do não plausível, de modo que se voltem contra os próprios companheiros de esquerda que ascenderam a posições de relevo.
Foi o que ocorreu em 2013, no Brasil, com o “espancamento” moral do prefeito Haddad, em início de mandato. Nesse levante, comprovadamente manipulado a partir de fora do Brasil, com apoio tático da mídia corporativa nacional, iniciou-se o processo que resultaria no Golpe de 2016.
O Brasil foi apenas um desses experimentos destrutivos do grande capital na malha mundial das redes. Golpes semelhantes haviam ocorrido nas chamadas Revoluções Coloridas, financiadas pela OTAN por meio do NED, IRI, USAID, Open Society e destacamento da CIA. Iugoslávia, Ucrânia (2004), Quirguistão e Geórgia foram países em que a juventude ocupou as ruas para desestruturar governos e assumir o papel que antes era reservado às forças armadas externas.
Depois disso, inúmeros outros países entraram na mira dos ilusionistas da rebelião digital: Egito, Líbia, Síria, Venezuela, a Ucrânia (com forte apoio neonazista, em 2014) e até mesmo a Bolívia, em 2019. Em todos esses casos, a barbárie nasceu de parcerias dos EUA com grupos locais de direita e com as corporações da mídia corporativa.
Em 2022, tudo permanece como dantes no quartel de Abrantes. Bolsonaro segue liderando as interações na Internet brasileira. A mídia ocidental continua a redigir seu romance sobre a guerra na Ucrânia, agora com censura de toda e qualquer locução divergente. Acadêmicos de aluguel seguem constituindo e divulgando versões da pós-verdade para exaltar carniceiros e enodoar a reputação de ícones finados da saga progressista.
E jovens, agora cruzando a linha dos 30 anos, teimam em repetir que 2013 foi um levante popular espontâneo e legítimo e que a influência estrangeira nos eventos não passa de teoria da conspiração.
Walter Falceta é jornalista e um dos fundadores do Coletivo Democracia Corintiana (CDC)