A endemia dos crimes sexuais no Brasil

Por Simão Zygband

Sou homem e quero falar sobre um tema que deverá criar muita polêmica. Tomara. Gosto dela e acho muito produtiva. Depois que se criou o conceito de lugar de fala, supostamente não tenho autoridade para falar sobre questões que não me dizem respeito diretamente. Não posso falar, por exemplo, de negros por que não sou negro, de abuso sexual por que não sou mulher ou sobre gays e não sou gay.
O psicanalista Contardo Calligaris, recentemente falecido, escreveu na Folha contra este conceito de lugar de fala. Disse que era “alérgico” ao argumento “você não pode falar dos negros porque não é negro”. Estou com ele. Todo mundo deve expressar seus sentimentos, de qualquer assuntos, sob a sua ótica. A sociedade é que deve julgar a pertinência da abordagem do tema.
Bom. Mas quero falar sobre o abuso sexual que é realizado majoritariamente contra as mulheres mas, quando atinge crianças, trata-se de um abuso chamado de pedofilia. Também se comete mais contra meninas do que meninos, mas há também contra eles.
Os crimes sexuais são praticamente endêmicos no Brasil. Não saberia bem os motivos, mas suspeito que seja fruto de uma nação oprimida e reprimida sexualmente onde, para piorar, as crianças são sensualizadas precocemente. Os abusos acontecem principalmente dentro da própria família, inclusive as evangélicas, mostram as pesquisas realizada pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP).
Em 2010, ocorreu a chamada CPI da Pedofilia, diante de casos grotescos de exploração sexual de crianças. Para chegar ao ponto de ser necessário realizar uma CPI, havia uma explosão de casos na mídia, o que sempre motiva os parlamentares a se movimentar. Também é comum que nunca dêem em nada.
O relatório final da CPI teve quase 2 mil páginas e relacionou casos de pedofilia e ações feitas pelas polícias em nove estados – Goiás, Roraima, Pará, São Paulo, Espírito Santo, Piauí, Amazonas, Alagoas e Bahia. Nele estão apontados políticos, religiosos e até magistrados como suspeitos da prática do crime contra as crianças.
Evidentemente que, depois de muito barulho, não houve nenhuma pessoa indiciada. O presidente da comissão era o então senador Magno Malta (PR/ES), um pastor evangélico que também presidiu a CPI do Narcotráfico (outra que também não deu frutos). Normal acabar em pizza.

Abusada pelo tio

Na semana que passou, uma amiga minha de facebook escreveu um texto que, considero, seja semelhante a milhares de crianças e jovens abusadas sexualmente dentro da própria família. Escreveu ela, cujo nome manterei no anonimato:
“Hoje recebi a notícia do falecimento de um tio que abusou de mim. E então lembrei que a primeira vez que me chamaram de “louca”, foi quando contei o que acontecia comigo. Eu era tão jovem, não sabia nada de nada e passei um bom tempo carregando a culpa de a louca ser eu. Mas depois, com o passar dos anos, entendi que sempre quando colocamos pra fora o que “não se deve falar”, a louca sempre será você. E então essa culpa diminuiu. Hoje ainda tento me libertar dela por completo. É absurdo, eu sei, mas a verdade é que eu ainda a sinto como uma sombra, me perseguindo nos momentos de fragilidade. Mas é apenas uma sombra. Em breve, não restará mais nada”.
Esta minha amiga de facebook é hoje uma adulta que durante toda a sua vida carregou consigo este sentimento de culpa. Não é incomum que as mulheres sejam acusadas pelo estupro (estava com roupas bem justas) ou que façam um “mimimi” de “coisa tão natural e corriqueira”.
O psicanalista Joel Birman relata que em seus atendimentos é muito comum ouvir relatos deste tipo e que a mãe ou os familiares acreditam que a vítima “está lhes trazendo problemas” ao relatar que sofreu abuso sexual. Em geral, há um silêncio cúmplice e todos se calam e permitem que os fatos se sucedam.
Esta omissão também faz parte de um perfil do povo brasileiro, que prefere jogar o problema para debaixo do tapete a enfrentar a realidade. Que o diga a mãe do menino Henry Borel, assassinado a pancada pelo padrasto, vereador Dr. Jairinho, um monstro do partido Podemos, o segundo mais votado pelos cariocas para a Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Monique Medeiros da Costa e Silva não queria melindrar seu novo marido e não deu atenção às queixas do menino. Neste caso, específico, não houve crime sexual, mas omissão por parte da mãe, muito comum quando se trata de violência, sexual ou não.

Casas Bahia

Ainda que tardiamente, uma vez que o acusado faleceu em 2014, estourou através de reportagem da Agência Pública, um escândalo dos crimes sexuais praticados por Samuel Klein, o fundador das Casas Bahia.
Segundo a reportagem, Samuel Klein teria usado seu poder como empresário para manter durante décadas um esquema de aliciamento de menores e adolescentes para a prática de exploração sexual. A equipe da Agência Pública ouviu dezenas de depoimentos de vítimas, o que caracteriza com perfeição a prática de crimes sexuais. A pergunta que não quer calar: por que diante de vários processos na Justiça, nada houve contra o dono das Casas Bahia? Por que os que o circundavam se calaram? Acho que nem Freud explica.

 

 

 

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  1. Excelente o seu texto, Simão. Bem oportuno. Só um detalhe. Dr. Jairinho não foi o vereador mais votado do Rio nem seu partido é o PSC. Jairinho pertencia ao Solidariedade.
    O mais votado de todos foi o professor Tarcísio Motta do PSOL.

  2. Um texto para se refletir.
    A cultura brasileira culpa , a nós mulheres, sempre. Lembro me de qdo trabalhava, se chegava chateada, afinal temos problemas, os colegas cochichavam ” ahh o marido dormiu de calça jeans ou é falta de homem “. Era e ainda é assim. A palavra da mulher vale muito menos que a do homem.
    Samuel Kein se livrou pq era milionário e assim segue o baile para quem o é.
    Quanto ao crime do Henry, prefiro me calar. Perdi minha caçula, em situação diferente, mas não tenho estômago para escrever qq coisa sobre tds que sabiam das torturas. Dói.

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