A educação no contexto da Reforma Religiosa

Por Sonia Castro Lopes

Em um distante 31 de outubro inaugurava-se o mais importante cisma da cristandade. Nessa data, precisamente no ano de 1517, Martinho Lutero fixou na igreja de Wittemberg, na Alemanha, as 95 teses que iriam constituir a base da doutrina protestante. Nascido em uma pequena vila da Saxônia, em 1483, Lutero estudou em um mosteiro agostiniano, onde recebeu as ordens em 1505. Profundamente decepcionado com a corrupção existente na Igreja, afasta-se progressivamente do catolicismo. A publicação das teses sobre os abusos da ‘igreja oficial’ assinala uma tumultuada relação com a Cúria romana que se conclui com a ruptura definitiva.

O século XVI foi marcado por transformações e rupturas em todos os setores – social, político, econômico, religioso e cultural. A Modernidade toma corpo neste século com a emergência do Estado Moderno, a afirmação da economia de mercado e do capitalismo e a ascensão da burguesia como classe social. A visão antropocêntrica humanista ocupa uma posição central e todo esse processo vai afetar diretamente a educação que passa ser articulada pela ação de vários agentes – família, escola, associações – que se complementam num esforço de conformar o indivíduo à nova sociedade disciplinar que exercerá vigilância sobre ele a fim de torná-lo um ser produtivo e civilizado.

A escola, da forma como a entendemos hoje, pode ser considerada uma invenção dessa época. Planificada em suas ações e racionalizada em seus processos, a escola moderna assumiu um papel social cada vez mais relevante e, naquele contexto, passou a ser a instituição mais adequada para realizar não só a transmissão de conhecimentos, mas, sobretudo, a socialização, antes obtida na prática das oficinas, igrejas e associações. A infância, outrora livre, viu-se enclausurada em um regime disciplinar rigoroso, que incluía vigilância constante, como nos lembra Foucault no clássico “Vigiar e Punir.” Fruto da modernidade, essa instituição visava à formação de um “novo homem” sintonizado com o sistema capitalista nascente, um homem produtivo e obediente às regras do sistema.

O movimento da Reforma religiosa e cultural assume desde o início um importante significado educativo, na medida em que adota como fundamento um contato mais estreito entre o indivíduo e as Escrituras, valorizando o princípio do ‘livre exame’ dos textos sagrados pelo desenvolvimento da capacidade de leitura. Tornou-se prioritária a difusão no meio popular, especialmente nas comunidades religiosas, do ensino da leitura nas escolas públicas mantidas pelos municípios. Pode-se dizer que com o advento da reforma protestante afirma-se no campo pedagógico o princípio do direito e dever de todos os cidadãos em relação ao ensino, ao menos no grau elementar. Não será exagero afiançar que começa aí a se configurar o princípio da obrigação e da gratuidade da instrução. Como afirmava Lutero, “a lei de Deus não pode ser mantida por punhos e armas; mas apenas com a cabeça e com os livros.”

A concepção pedagógica de Lutero baseava-se num apelo à educação para que todos os homens e mulheres pudessem cumprir seus deveres sociais. Para isso haveria necessidade da ampliação de boas escolas masculinas e femininas, ainda que sob uma perspectiva discriminatória, já que a instrução para as mulheres era condição necessária para que conduzissem bem suas bases familiares.

Se as famílias se mostrassem relutantes em enviar seus filhos à escola, seria dever da autoridade temporal obrigar os súditos a fazê-lo. A educação para Lutero deveria apoiar-se no estudo das línguas, as antigas e a nacional, para que melhor se pudesse compreender a ‘verdade’ do Evangelho. A frequência escolar seria limitada a duas horas por dia enquanto o tempo restante seria dedicado ao trabalho em casa, à aprendizagem de um ofício pois “estudo e trabalho devem caminhar lado a lado.”

Se o processo reformista produziu a ampliação do sistema escolar e a legitimação do ensino da leitura para todos os cidadãos sem distinção de sexo ou classe social, é preciso considerar também o alto grau de repressão imposto aos fiéis que deveriam servir ao novo sistema econômico e político que se afirmava neste século. O homem produtivo precisava ser formado e o instrumento idôneo para formar esse trabalhador era a escola que passou a cultivar o hábito da laboriosidade, que congregava aspectos como ordem, respeito, asseio, docilidade, obediência e pontualidade.

A religião protestante, especialmente com Calvino, um dos mais célebres seguidores de Lutero, criou trabalhadores e empresários disciplinados e sóbrios, perfeitamente ajustados às necessidades do desenvolvimento capitalista que emergiu com força no século XVI. Como frisam alguns historiadores, o protestantismo foi, em larga medida, a visão burguesa do cristianismo.

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