Por Miriam Waidenfeld Chaves
Depois da missa de domingo, Clarice sempre partia de bicicleta até o limite de seu reino, de onde se estendia uma imensa faixa de areia movediça. Fofa, branca e fina como a areia da praia, esse território imaginado e definido por seus pais apartava Clarice dos perigos que poderiam existir do outro lado daquela linha inventada.
Restava-lhe pedalar pelo perímetro de terra batida que se estendia colada àquela extensão de areia, que num tênue limite dividia seu mundo de outro, segundo ela, misterioso, e que, para sua surpresa, encontrava-se bem ali ao alcance de todos.
E se desobedecesse aos pais e fincasse os pés do outro lado da fronteira? Será que aquela areia branca, tão igual à areia de sua praia matinal, a devoraria até sumir da superfície da Terra, como nos filmes que costumava assistir na recém- adquirida TV da família?
Por medo, acreditou nas palavras dos pais que, nesse caso, atingiram seu intento em delimitar as andanças da filha pelas cercanias do bairro. E se, no íntimo, Clarice sempre duvidou da veracidade dessa história tão esdrúxula, nunca ousou atravessar para o outro lado.
Assim, junto com Marília e Juca, Clarice, durante muito tempo, conviveu com essa fábula mirabolante, cuja paisagem mais se parecia com as locações de Jim das Selvas, seu seriado favorito das tardes de domingo.
Sempre que ali estavam, cobiçavam aquele país imaginário. E, frente ao inalcançável, a solução era inventar histórias sobre a vida do lado de lá, até a fome bater, quando aí decidiam voltar correndo para casa.
De fato, essa espécie de terra de ninguém era bastante diferente da paisagem que cercava a parte do bairro onde Clarice residia: onírico, esses quatro quilômetros de areia movediça eram cortados por um riacho coberto por uma floresta, de onde a qualquer momento poderia aparecer algum pigmeu antropófago.
E em dias de maré alta, quando o mar invadia o riacho, seu volume de água aumentava tanto que inundava a areia branca, transformando-a em lama. Logo, mais perigosa e letal. Capaz de tragar para o centro da Terra qualquer pessoa em menos de dez minutos.
Sentindo-se em um set de filmagem de Jim das Selvas, nesses momentos, Clarice, com seus nove anos, munida de um binóculo, transformava-se em uma verdadeira exploradora e dali de seu lugar cativo estendia seus olhos para aquele território inabitado e narrava o que via para Marília e Juca que, atentos, não perdiam nenhuma palavra dita pela amiga. Depois, os três, morrendo de medo, pegavam suas bicicletas e voavam para casa.
De repente, num dia de verão, Clarice nunca mais vislumbrou sua areia movediça. Alguns trabalhadores se apossaram daquele paraíso intocável e com tratores derrubaram a mata, cimentaram o riacho e pavimentaram a areia branca.
Sem a fronteira para delimitar seus passos, Clarice, depois da missa de domingo, junto com Marília e Juca, finalmente atravessou de bicicleta para o lado de lá.
Preferia não tê-lo feito, pois naquele momento, já com seus 11 anos, se deu conta de que havia perdido a sua infância.
Voltou para casa cabisbaixa e sua mãe ao saber do ocorrido a abraçou forte e disse:
– Hoje fiz aipim frito que você adora. E de sobremesa, doce de coco, da avó!
Ainda por muito tempo, Clarice assistiu a seu seriado predileto. Só que confortavelmente deitada sobre o sofá que se estendia lânguido em frente a sua Smart TV. E apesar do preto e branco borrado e do delay da dublagem, as cenas com a areia movediça, precipícios e o cipó levando Jim das Selvas para o outro lado da floresta eram aquelas que mais a emocionavam. Era como se estivesse bem defronte àquele território intocado de sua infância.
Miriam W. Chaves é contista e professora da UFRJ.
Resposta de 0
Muito bom ! Esse conto nos leva à uma viagem aos limites das nossas areia movediças e os profundos movimentos que atuam no nosso tempo interior.