Tragédias Brasileiras – Futebol & Prática Política

Por Hélio Alcântara

GOVERNO BOLSONARO, ANO IV
Tragédias Brasileiras – Futebol & Prática Política – De Afonsinhos, Reinaldos, Wladimires e Sócrates

Quando marcava um gol, Reinaldo levantava o punho direito cerrado no alto. Era sua marca, uma maneira de protestar politicamente, se colocar contra o governo militar que comandava a ditadura no país, nos anos 1970. Sócrates também comemorava assim, mas às vezes nem os celebrava, de tão desgostoso diante de determinada situação.

Afonsinho usava barba e cabelos compridos, numa época (segunda metade dos anos 1960) em que esse look era associado aos guerrilheiros comunistas, por causa da figura mítica de Che Guevara. Entrou na justiça, conseguiu se livrar de Zagallo, do Botafogo e dos grilhões da Lei do Passe, que prendia o atleta ao clube até os 32 anos. E Wladimir, negro, de fala bem articulada, irritava os dirigentes ao defender os direitos trabalhistas de sua classe profissional.

Magrão, um dos apelidos de Sócrates, dizia o que pensava, e não hesitava em se alinhar com seus companheiros de profissão ao vê-los injustiçados ou tratados de forma tirânica pelos dirigentes. Foi assim quando o então presidente do Corinthians, Vicente Matheus, afastou o goleiro Jairo do elenco, acusando-o arbitrariamente de tê-lo agredido: Sócrates (juntamente com Wladimir e Zé Maria) criou uma comissão para defender o atleta e enfrentar Matheus. O goleiro acabou reintegrado.

Wladimir lutou pela sindicalização dos atletas e pela extinção da mesma Lei do Passe que perseguiu Afonsinho e todo o resto. O capitão da “Democracia Corinthiana” (1981-85), a exemplo de Sócrates, declarava sua posição ideológica abertamente e trabalhava pelas candidaturas políticas que julgava mais adequadas para conduzir o povo brasileiro.

Reinaldo também era uma voz importante no futebol profissional, um meio dominado por dirigentes conservadores e oportunistas – a maioria, bandidos. Toda vez que era entrevistado, incomodava o establishment. Foi assim quando o semanário “Movimento”, de esquerda, conversou com ele, em pleno governo Geisel, em março de 1978.

Entre outras coisas, o atacante do Atlético Mineiro defendeu o voto popular para a escolha de governantes. Disse que, apesar de os militares terem afastado o povo brasileiro da política, esse mesmo povo tinha maturidade para votar, pois já havia demonstrado isso no passado. Defendeu a instalação de uma Assembleia Nacional Constituinte e sugeriu que os militares devessem libertar os presos políticos no país, promovendo uma anistia ampla – o que acabaria acontecendo em 1979.

Sobre a relação patrão-empregado, Reinaldo disse que “a gente dá mais lucro para o dono, e o salário não dá. Você trabalha oito horas, e o patrão paga o salário que na verdade só corresponde a uma hora de serviço”. E, quanto à própria classe profissional, se manifestou a favor da organização dos jogadores em associações para alcançarem seus direitos.

Por tudo isso, a CBD (futura CBF) estudava cortar o centroavante da Seleção Brasileira que disputaria a Copa do Mundo, na Argentina, em junho de 1978. Só não o fez porque precisava dele para brigar pelo título. Mas o jogador mineiro enfrentaria situações delicadas até chegar à Argentina.

Na cerimônia de despedida da delegação brasileira, no Palácio Piratini, em Porto Alegre, o presidente Geisel cumprimentou, um a um, os jogadores perfilados. Ao ser colocado diante de Reinaldo, Geisel disse: “Ah, então é esse o menino… Você joga muito bem, mas quem cuida da política somos nós. Jogue futebol e deixe a política para nós”. Reinaldo apertou a mão do general e, assustado, não abriu a boca. Na manhã seguinte entrou no avião em direção à Argentina, que também vivia uma ditadura militar sanguinária.

André Richer, chefe da delegação brasileira, disse a Reinaldo que, na Copa, ele deveria evitar comemorar os gols levantando o braço e cerrando o punho. Segundo ele, aquilo era “uma coisa meio revolucionária, melhor comemorar de braços abertos, que é mais bonito”. Na verdade, a “coisa meio revolucionária” era vista pelos militares como um gesto provocador, impertinente. Reinaldo escutou – não disse nem sim nem não.

Na estreia contra a Suécia, o centroavante fez um gol. E levantou o punho direito cerrado no alto. Segundos depois, como se de repente se lembrasse das “recomendações”, levantou também o outro braço com o punho cerrado. O recado estava dado.

Na semana que antecedeu o 2º turno da eleição presidencial procurei Reinaldo e soube que a diretoria do Atlético, onde o ex-atacante trabalha atualmente, havia “instruído” seus funcionários a “não se manifestarem sobre política”.

Quarenta e quatro anos depois daquele gesto libertário que vimos em gramados argentinos, compreendi o quanto a vida tem sido implacável com esses velhos combatentes… Sócrates partiu há 11 anos e Wladimir, aos 68, enfrenta os tropeços iniciais de uma doença maldita a que deram o nome de Alzheimer.

De qualquer modo, me sinto privilegiado por ter experimentado momentos históricos na vida do nosso país, ligando futebol e política, e as imagens de resistência e luta nas celebrações de Afonsinho, Reinaldo, Sócrates e Wladimir permanecem intactas em minha alma.

Só lamento que, nos últimos tempos, não tenham brotado outros punhos cerrados – um só Casagrande não poderá ser capaz de transformar o estado de subserviência e alienação que reina no céu do futebol profissional brasileiro.

Hélio Alcântara é jornalista e escritor. Autor do livro Wladimir, sobre o lateral corintiano

 

 

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