Uma aventura não recomendável

Por Marina Amaral – da Agência Pública
Foto: Getty Imagem
 

O presidente Jair Bolsonaro se referiu à viagem de trabalho do indigenista Bruno Pereira (que dedica a vida à proteção dos indígenas e atua há 11 anos no Vale do Javari) e do jornalista Dom Phillips (com mais de 30 anos de carreira, 15 deles no Brasil) como “uma aventura” na Amazônia, definida por ele como “não recomendável”.

Também deixou claro porque seria perigoso dois homens sozinhos em um barco na região. “Tudo pode acontecer. Pode ser um acidente, pode ser que tenham sido executados (grifo meu)”. Está claro que não se referia a onças nem jacarés.

Bolsonaro conhece bem o risco de execuções na Amazônia. No seu governo, os conflitos no campo, que se concentram na região (53% das ocorrências em 2021), ficaram bem acima da média dos 18 anos anteriores. Dos 35 assassinatos ocorridos no ano passado, 28 foram na Amazônia. Os indígenas encabeçam a lista dos mortos em decorrência dos conflitos: representam 101 das 109 mortes, todas essas de vítimas do garimpo na terra Yanomami. No mesmo território, 3 indígenas isolados foram assassinados.

Como sabemos, o presidente estimula o garimpo e o desmatamento abertamente, inclusive em terras indígenas, persegue os fiscais do IBAMA e vem destruindo a Funai – e a Amazônia. Não se constrange em se colocar do lado dos criminosos – dos grileiros de terra e seus pistoleiros às facções que controlam cada vez mais a bandidagem tradicional: madeireiros, garimpeiros, caçadores e pescadores. A ameaça conhecida mais recente dirigida a Bruno e aos indígenas da Univaja veio por parte desses últimos.

Na quarta-feira passada, os repórteres Anna Beatriz Anjos e Bruno Fonseca revelaram que a maior multa aplicada pelo Ibama por pesca ilegal até hoje, de R$ 10 milhões de reais, é referente ao transporte ilegal de pirarucu exatamente ali, no Vale do Javari. De acordo com relatos de indígenas e especialistas, a pesca e caça ilegal seriam financiadas por narcotraficantes da fronteira com o Peru, que deveria ser fiscalizada pelo Exército e pela Polícia Federal – outra obrigação não cumprida pelo militarizado governo federal.

As multas ambientais minguaram depois de 2019, mesmo ano em que Bruno foi exonerado do cargo de coordenador de indígenas isolados da Funai, no início do governo Bolsonaro, depois de participar de uma operação que destruiu 60 garimpos no Vale do Javari, onde fica a maior concentração de indígenas isolados no mundo. Era na condição de voluntário que Bruno, apesar de ameaçado, continuava a atuar na proteção aos indígenas, associado aos guardiões da Univaja, que enfrentam os riscos e cumprem a missão da qual o Estado, presidido por Bolsonaro, abriu mão. A base do Ibama em Tabatinga, a mais próxima à região, foi fechada, e hoje o órgão conta apenas com a sede em Manaus, há mais de 1000 quilômetros de distância. Indígenas e os que trabalham na proteção dos territórios ficaram ainda mais vulneráveis. Em 2019, na mesma região, foi assassinado Maxciel Pereira dos Santos, que atuava na Frente de Proteção Etnoambiental da Funai, já atacada 4 vezes antes de o próprio Maxciel ser morto com dois tiros na cabeça em Tabatinga. Até hoje o crime está impune.

Para Bolsonaro, que, enquanto escrevo, se reúne com o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, a quem terá de falar sobre os desaparecimentos, indígenas e os que os defendem são apenas obstáculos a seu projeto de saqueamento da Amazônia. O mesmo se pode dizer em relação aos jornalistas, como Dom Phillips, em um governo que tornou corriqueiros os ataques à imprensa, capitaneados pelo próprio presidente, patrocinador assumido de disseminação de mentiras e notícias falsas. O revelador descaso com o desaparecimento de ambos, que obrigou os indígenas a recorrerem à Justiça, com apoio da Defensoria Pública da União, para exigir engajamento das instituições brasileiras na busca, pode ter impossibilitado o resgate.

Continuamos torcendo por Dom e Bruno e esperando que a aventura não recomendável de eleger um extremista de direita para a presidência não se repita nas próximas eleições.

PS. Nesse momento, duas equipes de reportagem da Agência Pública, lideradas pelos repórteres Ciro Barros e Rubens Valente, estão na Amazônia, região que cobrimos desde 2012, para se unir ao esforço de jornalistas de todo o mundo na tentativa de esclarecer as circunstâncias do desaparecimento de Dom e Bruno e informar o público sobre as ações das autoridades e instituições no caso. Ninguém vai nos calar, presidente!

 

Marina Amaral é jornalista, diretora executiva e editora da Agência Pública. Tem passagens pelas redações da Folha de S. Paulo, revista Globo Rural, TV Record e TV Cultura.  Desde 2011 ajudou a fundar e dirige  o projeto de jornalístico investigativo.

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